quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Teatro na ribalta




Fotos: Filipe Mamede


Quem vem do bairro das Rocas ou quem desce da Cidade Alta não tem outro jeito, senão contemplar o secular Teatro Alberto Maranhão, monumento tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico do Rio Grande do Norte. Inaugurado um ano antes da chegada das luzes de acetileno que iluminariam as ruas do bairro da Ribeira em 1905, o teatro teve outro nome de batismo. De 1904 a 1957, o teatro levava o nome do maestro e compositor de O Guarani, Carlos Gomes.

A concepção do teatro conserva, até hoje, linhas e elementos da arquitetura francesa do final do século XIX, além de cerâmica belga como revestimento do piso de entrada e da platéia. Obedecendo a planta do engenheiro José de Berredo, no Governo Ferreira Chaves, sob a direção do Major Theodósio Paiva, a construção teve início em 1898, e se deu simultaneamente a outros no Brasil: o Teatro Amazonas em Manaus é de 1896; o Teatro Municipal do Rio de Janeiro foi inaugurado em 1909; o Teatro José Alencar, em Fortaleza, iniciou as atividades em 1910; e o Teatro Municipal de São Paulo começou a funcionar no ano seguinte. Eles assumiam a função de vitrine cosmopolita para as novas elites.

Em 1910, o Carlos Gomes, como era chamado àquela época, guardava a forma de chalé, com 18,30 metros de largura por 78,60 de extensão, tendo três portas e uma escultura de Mathurin Moreau, denominada “arte”, encimando a fachada. No segundo Governo de Alberto Maranhão, o Teatro passou por uma nova reforma, sendo alvo de críticas por parte do jornal Diário de Natal, que apontava a falta de sensibilidade dos governantes, afirmando que o governador só tinha olhos para a sua grande obra, o teatro, consumindo nele, recursos desmedidos, enquanto os flagelados padeciam as misérias da seca, que se prolongava desde 1902.

Mesmo criticado, a casa de espetáculos acabou ganhando um pavimento superior, portões e grades de ferro vindas da França (Fundição Val de Osnes), assim como os balcões e obras de arte na fachada. A Gran-Campañia Española de Zarzuela, Opera y Opereta Pablo López reinaugurou o teatro no dia 19 de julho de 1912 com a opereta “Princesa dos dólares” de Leo Fall. Em 1957, sendo o Teatro da municipalidade, o Prefeito de Natal, Djalma Maranhão, mudou a sua denominação para Teatro Alberto Maranhão – TAM.

Sobre a mudança de nome, o teatrólogo Meira Pires, diretor do TAM de 1952 a 1982, ano de sua morte, disse o seguinte: “Alberto Maranhão não podia permanecer relegado a um esquecimento total. Esse o motivo da batalha gloriosa para dar seu nome à casa de artes que ele construiu, movimentou e amou como um novo Romeu”. Em 1955, o teatro, ainda com o nome de Carlos Gomes, foi palco do 1º Festival de Teatro Amador, “certame idealizado pelo teatrólogo Meira Pires, comemorativo à reabertura do teatro e do qual participaram os Estados da Bahia, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará”. Poucos anos depois, Meira Pires, de 10 a 20 de outubro de 1958, realizou o 1º Congresso Brasileiro de Teatro Amador. Na ocasião foi fundada a Sociedade Nacional do Teatro Amador – SONATA, sob o patrocínio do Ministro da Educação e Cultura Clóvis Salgado e do Governador Dinarte Mariz de Medeiros.

Em 1959, ainda no governo de Dinarte Mariz, o teatro foi reformado integralmente, com obras do engenheiro Wilson de Oliveira Miranda, sendo reaberto em 24 de março de 1960. No dia 11 de março de 1977, a Orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte estreou no palco do TAM, bem como o sistema de ar condicionado central. Pouco mais de uma década depois, a Fundação José Augusto, presidida pelo jornalista Woden Madruga, iniciou, em junho de 1988, uma nova reforma contando com o apoio da Fundação Nacional de Artes Cênicas e a Fundação Banco do Brasil. Nesse reparo foram incluídos camarins, salão nobre, jardim, platéia e palco, buscando restaurá-lo sob supervisão técnica da Coordenadoria do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado.

Em 2004, por ocasião do centenário do Teatro Alberto Maranhão, uma nova reforma foi realizada. Esta obra deu ao TAM uma melhor acessibilidade, já que foram construídas rampas da rua para a praça, da praça para o Teatro e também nas entradas dos banheiros. Além disso, um moderno sistema de climatização foi implantado, sendo instalados condicionadores de ar nas platéias, salas administrativas e salão nobre. Também foi feita uma nova pintura no teatro e restaurados a iluminação, o piso, o mosaico e o mobiliário original. O pátio interno foi ampliado e seu piso trocado. O prédio ganhou um novo café, loja e banheiros. O salão nobre e hall de entrada foram revitalizados e toda infra-estrutura do teatro foi restaurada. Para Hilneth Correia, atual diretora do Teatro Alberto Maranhão, “os sons, as letras, as cores, os movimentos, e os gestos, são presenças vivas nessa casa”.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Luz, câmera e ação comunitária. Uma história chamada Cinema-Processo







Fotos: Alexandre Santos



Há um cinema diferente por aí. Um cinema que não depende de estúdios, nem de muito dinheiro para acontecer, mas que não chega a ser feito de uma maneira espartana. O cinema-processo - como é chamado pelos seus idealizadores - reside na filosofia do “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Mais que isso, é um movimento de cinema livre, onde tudo pode mudar e se adaptar. Onde as coisas estão em constante ebulição. Em outras palavras, cinema-processo é uma equipe de cinema realizando um filme com os recursos que encontram no local, sejam financeiros, humanos ou até mesmo um simples copo d´água para saciar a sede.

Nascido da cabeça do cineasta potiguar Buca Dantas em parceria do roteirista Geraldo Cavalcanti e da necessidade de se criar algo novo, diferente, o cinema-processo é uma metodologia de trabalho que pressupõe outras metodologias, como a economia solidária e o protagonismo local. “É o compromisso de contar histórias com as pessoas dos lugares, com os saberes dessas pessoas, é a gente juntar o nosso saber técnico com o saber lúdico dessas pessoas, convidá-las a se tornarem atores de si mesmo”, simplifica Buca Dantas. Com esse idealismo, Buca realizou o primeiro filme sob o signo do Cinema-Processo em 2006, quando ele e sua trupe se mudaram de mala e cuia para o “interior do interior” do Rio Grande do Norte.

“Quando chegávamos às comunidades, a primeira reação era de estranheza”, rememora. Falar de cinema num lugar onde a maioria das pessoas sequer pisou numa sala de exibição não é tarefa fácil. “Nós tivemos que convencer as pessoas de que aquela proposta era verossímil, e sem ter nada que provasse que ali seria realizado um filme, já imaginou?”. Quebrado o gelo inicial, a adoção dos moradores de Bom Sucesso, uma das comunidades escolhidas para a realização do filme, foi total. “A princípio não tínhamos roteiro, tínhamos um personagem apenas. Reunimos a comunidade e explicamos como era a personagem, e perguntamos o que eles fariam se alguém daquele jeito chegasse ali”, explica a atriz Quitéria Kelly, protagonista do filme Viva o cinema brasileiro!, obra inaugural do Cinema-Processo.

A partir daí se deu a construção da narrativa. A personagem de Quitéria foi sendo redefinida in loco com a concepção das pessoas, além das outras tramas da história. “Depois dessa tempestade de idéias, Geraldo (Geraldo Cavalcanti, roteirista) reunia essas sugestões e criava um fio narrativo. Esse texto era repassado para a equipe, que criava na hora”. Não só verdadeiros roteiristas, os moradores também atuam nos filmes. Durante as filmagens cada um teve meia-hora para ir em casa buscar o seu próprio “figurino”. “Nós fizemos oficinas para ensinar para eles noções básicas de como não olhar para câmera, improviso, alguns exercícios teatrais para relaxamento, e a gente ia gravar no mesmo dia. A cidade parava. Todo mundo ajudava”, explica a atriz.

QUANDO A PERSONAGEM VIRA PADROEIRA

Numa época de seca intensa e de temperatura elevada, a equipe percorreu três comunidades da região do semi-árido do Rio Grande do Norte: Serra da Tapuia, Barro Preto e Bom Sucesso, onde foi gravada a maior parte do filme. Com cerca de 800 habitantes, Bom Sucesso é um distrito da cidade de Santa Cruz, onde, obviamente, não tem cinema e o lazer se resume em colocar as cadeiras para fora de casa e bater papo com a vizinhança.

Quando a trupe cinematográfica aportou por lá, a comunidade não via chuva há pelo menos nove meses. Com a chegada da curiosa equipe de cinema, o imaginário do povo foi mais além. “O sertanejo é desconfiado por natureza. Mas, no momento em que se estabelece uma empatia, aí a casa dele passa a ser a sua”, explica Buca Dantas, dizendo que não demorou muito para os moradores ficarem arrebatados pela sétima arte. “A padroeira do lugarejo que até então não existia, acabou sendo Santa Luzia, em homenagem à personagem que nós tínhamos levado, uma certa Luzia recém chegada da Europa, filha de coronel que precisava se casar”, explica o cineasta. “As pessoas passaram a associar a chegada da gente como um sinal de que a chuva ia chegar, que algo iria mudar por ali”, revela a atriz Quitéria Kelly.


O SEGUNDO FILME

O segundo filme feito sob a alcunha do Cinema-Processo – Perdição – gravado na cidade de Janduís, no médio-oeste potiguar, já foi diferente, se aproximou mais do cinema clássico. Teve roteiro, preparação de atores, planejamento prévio, mas sem deixar de lado as marcas costumeiras na linguagem pensada por Buca e Geraldo. “Tinha uma flexibilidade ampla que permitiu mudanças de última hora e criação ao vivo. Uma cena podia ser modificada na fotografia, no jogo dos atores, sem interferir na continuidade do roteiro, além de contar com atores e técnicos locais”, explica Matyeu Duvignaud, diretor de fotografia dos filmes-processo. “Em resumo, Perdição conta a história de amor entre uma mulher casada com um mochileiro. Ela é casada com um homem simples, tem um filho com o mochileiro argentino que vai embora e só aparece quinze anos depois. É um filme sobre mudança, sobre a decisão de permanecer ou ficar, violência, disse-me-disse, temas esses que são universais”, define.

Durante as gravações, além das surpresas que a linguagem pressupõe, aconteceu o inusitado. Um dos atores principais partiu dessa para a melhor. “Um ator morreu no meio das filmagens. Não tínhamos terminado as cenas com ele, e nós precisamos mudar a história”. Embora trágico, Geraldo Cavalcanti revela que readequar o roteiro foi menos doloroso do que no primeiro filme-processo. “A história se passava em três períodos diferentes e o ator já tinha gravado os dois primeiros momentos, de modo que só tivemos que mexer na terceira parte. Mas mesmo assim foi um nó. O irônico nisso tudo é que o personagem também morria na terceira parte”, aponta o roteirista. “Eu filmei o enterro do Dedé Capoeira, que era um ator de Janduís, e usei no filme. Ele merece essa homenagem. Nessa variável, está a riqueza do cinema que a gente criou, por que nós podemos nos adaptar a qualquer situação”, explica Buca Dantas.

Com pouco mais de cinco mil habitantes, Janduís, distante 286 quilômetros da capital do Rio Grande do Norte, é um lugarejo onde o badalar do sino da igreja pode ser ouvido em qualquer ponto da cidade, mas que já vem sofrendo alterações em decorrência do mundo globalizado. “Em Janduís, quase todos os dias víamos vaqueiros aboiando usando moto e buzina no lugar do cavalo e o gogó”, relata o cineasta. De todo modo, foi pra lá que a equipe de cinema tomou destino. “Ficamos quase um ano por lá, vivendo do que a cidade nos oferecia, sem cachê, sem nada”, conclui Matyeu. A escolha de Janduís como palco para o segundo filme-processo não foi por acaso. O filme Perdição é uma livre-adaptação de uma peça chamada O fuxiqueiro, escrita por Lindenberg Bezerra, natural do município. “Decidimos fazer em Janduís pela identidade político-cultural que tenho com os artistas da Companhia Cultural Ciranduís, da qual Lindenberg faz parte, e por essa cidade ser quase um emblema do que seja o sertão”, explica Buca.


FRONTEIRAS CINEMATOGRÁFICAS

O cinema-processo não é um cinema endêmico, representante apenas da estética sertaneja e das temáticas que ela pressupõe, como o estereótipo da seca. É, sobretudo, um cinema universal, embora seja feito de forma mais experimental e muitas vezes com pouco ou nenhum recurso. “Surge a ideia do filme, surgem as necessidades e nós vamos buscar os parceiros que possam suprí-las, mas, já fazendo o filme, eis a grande diferença. Evidente que não se possa prescindir de sua existência (do dinheiro), mas de minimizar ao máximo a sua ingerência na decisão de se realizar um filme. Nós não buscamos a arte naif no cinema. Não é isso. É uma abordagem livre, mas que não significa que nós vamos fazer de qualquer jeito”, defende o cineasta.

“Para mim, uma das grandes sacadas do movimento reside na constatação de que, apesar de separados geograficamente e desamparados politicamente, os dramas dos habitantes das regiões mais isoladas e escondidas do nosso Estado são iguais aos dos habitantes de Manhattam ou Copacabana. A comprovação de que estamos ligados pelos mesmos conflitos”, explica o roteirista Geraldo Cavalcanti.

Bebendo da fonte do Cinema Novo, do Cinema-Verdade e do Neo-realismo, o Cinema-Processo pretende romper as fronteiras das terras potiguares e realizar filmes com temáticas urbanas, desde que se respeitem às tradições locais, as histórias que as pessoas têm para contar nos lugares onde esse cinema pode aportar. “O nosso objetivo é esse. Realizar cinema em qualquer lugar do mundo, em lugares que possam ter, inclusive, condições menos favorecidas do que a nossa. A ideia é dar voz à massa para cantar em coro esse samba, como na música de Seu Jorge”, traduz Buca Dantas. Para Geraldo Cavalcanti, o grande mérito do Cinema Processo é oportunizar às pessoas a contarem suas próprias histórias e vivenciá-las na tela. “Elas acabam contribuindo para a “ressignificação” da sua existência, para a sua reafirmação. É muito emocionante vê-las reviverem suas crenças”, define.

Cineastas e peregrinos, o Cinema-Processo deve mudar o português pela língua francesa por algum tempo. Convidados para participar do 12º Cinéluso Nantes, festival de cinema que acontece anualmente em Nantes, França, debatendo e provocando intercâmbios de produções cinematográficas de países de língua portuguesa, a trupe processual desembarca no mês de junho no país origem de Matyeu, o diretor de fotografia. Além de produzir micro-documentários, 20 ao todo, eles devem realizar um longa-metragem dentro da filosofia do Cinema-Processo. “O roteiro já está concluído. A ideia é abordar aspectos de pessoas que nasceram em outros países e, por motivos dos mais diversos, foram parar na França. Vamos contar as histórias que eles quiserem contar. Essa é a linguagem do Cinema Processo’’, reforça o cineasta.

Para Matyeu Duvignaud, a viagem de volta à França terá um sabor especial. Natural de La Rochelle, cidade onde será realizado o longa, ele confessa que está um pouco apreensivo com a visita ao seu país e, sobretudo, sobre o fato de produzir um filme em sua cidade natal. “Estou com medo e felicidade, claro. Mas estou com medo de achar um país sofrendo da crise. Não temos noção aqui no Brasil, mais essa crise é barra na Europa. As pessoas estão perdendo os empregos, eles estão numa luta grande. É disso que tenho medo, não achar um povo aberto como ele pode ser para as coisas novas, mas um povo com medo”, revela. “Filmar em La Rochelle, vai ser minha homenagem para o meu pai (o antropólogo francês Jean Duvignaud, falecido em 2007), ele sempre quiz que eu me aproximasse do cinema, ele tinha uma paixão por essa arte”. Enquanto isso, o clichê cunhado por Glauber Rocha ainda é atual: uma câmara na mão e uma idéia na cabeça. Eis o processo.

BUCA DANTAS - Um cabra da peste metido a moviemaker

Nascido há 38 anos na cidade de Currais Novos, interior do Rio Grande do Norte, Buca Dantas, nas horas vagas atende pelo nome de José Alberto Dantas. Caroneiro desde a adolescência, foi fundador da Ong de comunicação popular TV Garrancho, atuando no interior do nordeste entre 1990 e 1997, ano em que ingressou no curso de jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Sempre muito próximo do mundo televisivo e cinematográfico, Buca foi diretor e produtor do projeto Brasil Total, na rede Globo, de 2002 a 2004. Além disso, é consultor free lancer do Canal Futura desde 2005. Com o filme-documentário “Fabião das Queimadas – Poeta da liberdade”, produzido para o DOCTV/TV Cultura, em 2004, foi ganhador do 1° Festival de Cinema e Sertão do Ceará, em 2005, e foi convidado para participar do VI IMACOM, no mesmo ano, em Cuba.

Em sua bagagem audiovisual traz A Feira (1999), A estrada (2000), A força (2001), Viva o cinema brasileiro! (2006) e Perdição (2009), ainda inédito. Telas, cenários, roteiros e novas possibilidades. Sem disposto a realizar e a levar cinema, seja aos rincões do sertão brasileiro, ou seja, à Champs-Elysées, na França, Buca Dantas segue sua vida como se estivesse num verdadeiro road movie.

terça-feira, 14 de abril de 2009

PAUTA DO DIA: RONDA POLICIAL



Imagens: Ana Amaral


Fazer ronda policial é sempre um exercício interessante. Além de se deparar com toda sorte de vigarice, a ronda dá origem a um texto mais liberto quanto sua escrita, já que o fato policialesco abre espaço para narrativas mais dotadas de ação e por quê não dizer, emoção. Dito isso, vamos ao ocorrido.
No bairro da Cidade Alta, a mulher do dono de uma remanufaturadora de cartuchos, enquanto tinha a loja assaltada por dois ladrões, ligou primeiro para o marido para avisar do infortúnio, ao invés da polícia. Não deu outra. Pensando se tratar de simplórios trombadinhas, o dono da loja foi voando para o seu estabelecimento, espulsar ele mesmo os larápios que surrupiavam seu negócio.

Revólver na cara, "entra no carro e dirige fela da puta", foi o que ele ouviu. Descendo em direção à velha Ribeira, ainda deu carona para mais um bandido. Num dado cruzamento começa a troca de tiros. Bang! bang! bang! O dono do carro salta do veículo ainda em movimento e os ladrões fazem a permuta do Uno do dono da loja por um Chevette, e seguem destino rumo ao bairro das Rocas, lugar de gente humilde, mas que abriga uma grande leva de vagabundos e outros tipos perigosos à sociedade pequeno-burguesa.

Do Chevette, os três comparsas tentaram trocar de carro mais vez, mas só um deles conseguiu, fazendo de refém dessa vez um funcionário público no seu Gol, com algumas prestações a vencer. Enquanto dois tomaram rumo a pé, o que roubou o Gol fez o homem dirigir por pouco tempo. A polícia já fazia o cerco e não contou conversa. Alvejou o carro com ladrão, com refém, com tudo dentro. O motorista pediu a Deus e teve sorte. Nenhum arranhão. O bandido levou dois balaços no peito esquerdo e foi internado, mas já teve alta e seguiu pra delegacia de plantão, que vez por outra vem sendo palco de fulgas e outros procedimentos mais obtusos.

O funcionário público disse que estava na rua conversando com um amigo quando tudo aconteceu. Devia estar trabalhando na repartição... O dono da loja nunca mais dará uma de super-herói, espero... Dois dos bandidos continuam foragidos.... A coisa só ficou preta pra um deles, um moleque de 20 anos de idade, morador do bairro de Mãe Luiza, um lugar cercado por verde e bem pertinho do mar, mas que de santo não tem nada. Vida que segue.

sábado, 21 de março de 2009

Pés no chão e a verve do pensador.







Imagens: Frankie Marcone

Essa semana recebi uma pauta religiosa. Percorrer a procissão em nome de São José, no bairro homônimo, e tentar encontrar ali algum drama, alguém andando com os pés descalços, algum ser temente a Deus rogando para os Céus pedindo por alguma luz no fim do túnel. “Encontre alguma história humana”, pedia a pauta.

“História humana?” - indaguei. Com meu rápido questionamento veio junto uma catadupa de pensamentos filosóficos, lembrei de cara de Niezstche. “Onde vós vedes coisas ideais, eu vejo – coisas humanas, ah, coisas demasiado humanas!”. Eu também vejo humanidade em tudo ao meu redor. Na procissão não foi diferente. Encontrei humanidade na senhorinha octogenária dizendo que São José tinha lhe curado a forte gripe. Depois me deparei com um senhor de nome Calixto, com uma fala difícil, confusa, mas entendi que os seus pés pisavam direto no chão por causa de sua filha, envolvida amorosamente com um marginal. Coisas da vida.

Percorrendo as ruas do bairro junto com seus moradores, (além de ficar absolutamente suado) percebi a simplicidade das casas, das pessoas em si, da fé inabalável e irredutível. Estavam todos com um pé além da vida. Fosse pela idade já avançada da maioria, ou muito mais pela aparente sinceridade que demonstravam em louvação ao Santo, tido pela igreja como patrono da família, já que São José ficou na incumbência de ser o pai adotivo de Jesus Cristo.
"Deus", "imortalidade", "salvação", "além" - para o pensador estes são conceitos com os quais não necessitamos demandar tempo. Enquanto ele vê Deus como uma resposta esbofeteada, os moradores do bairro de São José andam com os pés no chão...

domingo, 1 de março de 2009

SEM PALAVRAS...




Fotos: Filipe Mamede

"Quem não vê bem uma palavra, não pode ver bem uma alma", dizia Fernando Pessoa. E, se ainda é difícil perceber as aparições, pelo menos que se tente perceber as palavras, ora, pois. Uma boa dica para tal intento é o Museu da Língua, na Estação da Luz, um lugar com capacidade de levar as pessoas a outras paragens literalmente, seja física ou culturalmente falando. Ao entrar no Museu, o visitante já se depara com uma tela de 106 metros - toda a extensão da Estação da Luz - onde é retratada a riqueza e a diversidade da língua portuguesa. Uma língua em constante movimento.
A cada passo em frente ao gigantesco painel, uma nova porta se abre mostrando um recorte do que temos de mais original: a língua no cotidiano. Seja no futebol, nos carnavais, na culinária, nas relações humanas, nas festas, na natureza, nas religiões, e nas danças. Como dizia o também poeta e antropólogo baiano, Antonio Risério, “nossa matéria-prima é a palavra. A palavra como som, como sentido, como prática, como senha, como signo cultural distintivo, como argamassa cultural, como história, como objeto, como entidade mutante e mutável”.
Além da tela superlativa, as paredes do Museu contam a história da língua portuguesa, dos primórdios até hoje em dia. O choque do europeu com o índio, as imigrações, o rádio, a TV, o americanismo, chegando à internet. Outro espaço é o Beco das palavras, onde qualquer pessoa pode não só brincar com a origem das palavras, mas também observar as suas formações em raízes radicais, prefixos e sufixos. Juntando com as mãos os pedacinhos que flutuam numa mesa sensível ao toque, o jogador descobre de onde a palavra veio e por onde ela caminhou até chegar à língua portuguesa.

Mas, muito mais do que aplicar as tecnologias ao espaço expositivo por puro deleite de modernidade, o Museu da Língua Portuguesa adota tal museografia a partir de um dado muito simples: seu acervo, nosso idioma, é um “patrimônio imaterial”, logo não pode ser guardado em uma redoma de vidro e, assim, exposto ao público. Unindo lazer, tecnologia e conhecimento de forma interativa, o Museu da Língua Portuguesa corrobora, através de sua existência, com o poeta Fernando Pessoa quando demonstra que nossa pátria é a nossa língua.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O SIGNO DA CIDADE







1 - Espelho antenado.
2 - O que sobrou da selva na selva de pedra.
3 - Uma rua cheia de tapetes?
4 - O caminho da luz.



Ao mesmo tempo ruína e eldorado, a cidade de São Paulo vai seguindo seu caminho como um verdadeiro catalizador de existências. Um ponto de convergência de tipos variados, sejam nacionais ou importados. Eu, como um verdadeiro cidadão híbrido, com um pé no cosmopolismo da cidade grande e, com o outro bem fincado nos bucólicos compassos flutuantes do sertão, sigo também o meu caminho, amando esta cidade, como quem ama um irmão transviado. Ou seja, minimizando, sobretudo, os defeitos, as ranhuras existentes.


Na cidade que é mais concreto do que qualquer outra coisa, vou buscando o qualquer outra coisa quando saio todos os dias pelas ruas munido com a minha singela câmera digital, um modelo hoje jurássico – com 5.0 mega pixels – mas que não me deixa na mão, me garantindo, pelo menos, o básico da composição fotográfica. Mas qual é o signo da cidade? O trânsito hiperbólico? A correria do tati-bitate contemporâneo? A torcida do Corinthians? O chop e os três pastéis? O cinza diário do firmamento? A indiferença aos espaços da metrópole? Talvez todas as alternativas sejam corretas, enfim. Minha proposta, então, é revisitar os “lugares-comuns”, desprovido das vendas que impedem uma apreciação mais sensível, ou melhor, fotossensível, digamos.

sábado, 10 de janeiro de 2009

DIFÍCIL É APRENDER A LER. O RESTO ESTÁ ESCRITO...








Imagens: Danilo Guanabara


A esquina do continente abriga uma praia que, há pouco tempo, não passava de uma acanhada vila de pescadores. Em duas décadas, essa paisagem bucólica mudou completamente e hoje o lugar se tornou um dos principais destinos turísticos do Brasil. Descoberta como um paraíso do surf em meados dos anos oitenta, a Praia da Pipa, lugarejo que fica a 85 km de Natal, passou a ser a morada de gente de todas as nacionalidades, como também o refugio da gaúcha Cíntia Junqueira, 44, que precisou dar praticamente à volta ao mundo pra descobrir o seu próprio paraíso.

Primeiras letras

Ler não era exatamente um prazer para a menina Cíntia. Principalmente quando era obrigada a decifrar Vitor Hugo ou Sartre e depois ser sabatinada pelo pai, com pouco mais de dez anos de idade. Nascida em Osório, no litoral gaúcho, filha de novos pobres, como ela mesma define sua família, Cíntia, querendo ou não, cresceu em meio à biblioteca do pai - um homem culto -, lendo, lendo e lendo. “Meu pai pegava os gibis, as revistinhas do Walt Disney e rasgava. Eu queria ler Mickey Mouse e, ao invés disso, eu tinha que ler Euclides da Cunha, já imaginou? Eu tinha 12 anos!”. A severa rotina literária durou até o dia em que resolveu ganhar o mundo.

Com a mochila nas costas, ela saiu de Porto Alegre ainda com 16 anos de idade. Passou por Garopaba, Rio de Janeiro, Ouro Preto, mas decidiu ir mais além. Aos 17, ela transformou a América do Sul em sua moradia. Trabalhando com aquilo que aparecesse, ela viveu na Argentina, no Chile, na Venezuela, no Equador – onde teve sua filha -, no Peru e na Colômbia, lugar onde começou a se envolver com drogas. “Depois disso eu fui pra Suíça, Espanha, Holanda, Alemanha, Itália... mas eu tava muito mal lá. Eu era traficante né, cara?”. “Sem nada na cabeça”, resumo que Cíntia faz de si mesma, ficou por um bom tempo fazendo a ponte-aérea entre Bolívia, onde comprava droga, e Itália, onde vendia. “Era barra pesada”, sintetiza.

Doze anos longe do Brasil. Cíntia viveu as dores e as delícias do mundo das drogas. No seu auto-exílio, “além de ganhar muito dinheiro”, como relembra, ganhou também o vício, fator que a deixou num lugar praticamente sem volta: o fundo do poço. Em 1994, ela se encontrava num bar, no País Basco, assistindo à final da Copa do Mundo, mas nem sequer percebeu quando Baggio perdeu o pênalti. Sob o efeito de drogas, não conseguia prestar atenção. “Eu estava babando em frente à televisão, aí chegou um cara pra mim – um espanhol – e perguntou de onde eu era e eu disse: sou brasileira”. Foi nesse encontro fortuito onde a vida de Cíntia tomou, mais uma vez, um rumo inesperado. Depois de saber que ela era brasileira, o espanhol esticou a conversa: “Você é uma idiota. Veio do país mais lindo do mundo, com praias maravilhosas e você aqui se matando. Tua seleção acabou de ganhar o Mundial e você nem piscou. Porque que você não vai embora? - insistiu ele – Você vai salvar a sua vida se você for embora daqui”.

O espanhol ainda deu o endereço completo. “Vá morar em Pipa, tem um amigo meu que mora lá, fica no Rio Grande do Norte”. Seguiu à risca os conselhos do desconhecido, mas sem esquecer de passar antes em Amsterdã, e só então embarcar para o Brasil portando uma boa quantidade de droga. “Cheguei em Pipa e virei a rainha do ácido. Dava ácido pra todo mundo, vendia... isso durou de agosto até novembro”. Para quem chegou do nada, sua saída foi ainda mais compulsória. Ela se viu flagrada com 500 drágeas restantes de um preparado denominado Lysergsäurediathylamid pelo químico Albert Hoffmann, no distante ano de 1938. Em outras palavras, os comprimidos eram de LSD.


Memórias do Cárcere

Outra mudança à vista. Presa na Penitenciária João Chaves, em Natal, o sofrimento foi uma constante durante os primeiros meses de prisão. Principal motivo? Abstinência de heroína, uma droga derivada do ópio, considerada uma das mais viciantes. Mesmo padecendo dos excessos cometidos, ela acabou percebendo outras realidades. “Eu era a única que sabia ler lá dentro. Então, as outras meninas sempre vinham pedir: Cíntia, escreve um bilhete pro meu namorado”. Com o tempo, ela se tornou uma espécie de Assistente Social das outras presas. “O diretor me chamou, me pediu pra que eu começasse a organizar os papéis das meninas... distribuir camisinha, fazer uma porção de coisa”.

Ajudando as outras pessoas na prisão, sem perceber, estava se ajudando também. “Eu já não tinha mais problema com droga. Eu praticava exercício, corria no campo. Comecei a mudar bastante. Tinha parado a heroína, a cocaína, todas as minhas dependências”. Em liberdade, depois de quase trinta meses de cárcere em Natal, Cíntia fez uma viagem libertadora - no sentido lato da palavra - para Pipa, onde, perto da praia e longe das drogas, redescobriu sua paixão pela literatura e promoveu a maior de todas as guinadas. “Eu queria mostrar que eu mudei. Eu tinha vivido tanta coisa na cadeia, eu precisava mostrar pras pessoas que agora era diferente. Trabalhei de garçonete, fiz faxina, eu fiz tudo que eu podia fazer, pra mostrar que eu tinha mudado”.

Enquanto atendia aos fregueses do bar onde era garçonete, numa tarde ensolarada qualquer da Praia da Pipa, Cíntia chegou a uma conclusão. Tinha capacidade para mais. Muito mais. “Eu perguntei pra mim mesma: o que é que eu vou fazer da minha vida?”. Já que estava começando do zero – ela ponderou – ia procurar fazer alguma coisa que realmente gostasse. “O que é que eu aprendi desde pequena”? Essa foi a segunda indagação que se fez. A resposta veio no ato: “Eu sei ler”. Depois da descoberta, alguns amigos aconselharam Cíntia a abrir um sebo.

Book Shop – Uma biblioteca comunitária

Em meados de 1998, ela fez o seguinte: “Com o primeiro salário que eu recebi do bar, eu aluguei uma casa, peguei os dez livros que eu trouxe da prisão e coloquei numa prateleirazinha em frente à garagem”. Em meio à exuberância da Praia da Pipa, nascia ali o Book Shop. Um espaço dedicado à cultura e, sobretudo, à literatura. “As pessoas foram passando na frente do lugar e começaram a me perguntar: Cíntia, você gosta de livros? Você quer livros?”. Abrindo as portas com apenas dez volumes, com o passar do tempo, o Book Shop foi crescendo através de doações, formando um acervo que hoje conta com mais de 2.000 livros. Assim, criou-se em Pipa um verdadeiro ponto de convergência. Um lugar onde se pode alugar livros, jogar xadrez e onde as pessoas da comunidade se encontram para discutir sobre os compassos flutuantes da Praia da Pipa, mas, sem esquecer da literatura.

Em 2004, porém, depois de alguns anos de pleno funcionamento, esse espaço fechou. Com o contrato de locação vencido e sem dinheiro para renovação, o jeito foi encaixotar os livros e dar adeus ao Book Shop. Felizmente, isso durou um mês apenas. “Cadê o Book Shop, Cíntia?”, queria saber José Morais, dono de uma pousada na cidade. Cíntia explicou a situação “quixotesca”, como ela adjetiva, e o amigo tratou de dar o jeito em tudo. “Eu tenho um lugar e você vai pra lá. Não se preocupe com nada. Nem água, nem luz. O Book Shop vai ser lá”, José Morais sentencia.

Gentilezas à parte, o Book Shop tem a capacidade de concentrar o mundo todo em poucos metros quadrados. Numa das paredes estão expostos quadros com imagens dos autores prediletos de Cíntia: Oscar Wilde, Thomas Mann, José Saramago, Albert Camus, Dante Alighieri, Jorge Luis Borges, Garcia Márquez, Franz Kafka, Julio Cortázar, Fiódor Dostoiévski, Reinaldo Arenas e Guimarães Rosa. Além da decoração alternativa e muito charmosa, o lugar aglutina livros de toda natureza e em vários idiomas, fruto do escambo com os estrangeiros. Obras raras e antigas como Guerra e Paz, de Tolstoi, original em russo e uma coleção do francês Visconde de Chateaubriand, publicada em 1806, podem ser encontradas por lá. Mas, além das milhares de histórias que povoam as dezenas de prateleiras, o Book Shop tem ainda espaço para algumas excentricidades da dona.

O bicho de estimação de Cíntia é uma gatinha cujo nome é Mafalda, uma homenagem à personagem criada pelo cartunista argentino Quino, nos anos 60. “Ela apareceu aqui e foi ficando, foi ficando... acho que ela queria aprender a ler”, satiriza. Aos livros que julga transparecer uma literatura menor, só resta um destino: a forca. O castigo medieval não deixa de fora nomes como Sidney Sheldon, John Grishan, Dan Brown e nem o imortal Paulo Coelho. Por causa dessa prática, o teto do Book Shop é repleto de alfarrábios pendurados pelo “pescoço”, fato que causa estranhamento e curiosidade por parte dos visitantes. “E esses livros pendurados aqui no teto?”. Essa é uma pergunta que sempre se repete, mas que Cíntia nunca se cansa de responder. “Ah, porcaria eu enforco”, ela resume de maneira taxativa.

Completando uma década de existência e freqüentado por pessoas do mundo todo, o Book Shop fica no coração da Praia da Pipa, numa viela arborizada cujo nome é Beija-Flor. Mais literário - impossível. E o método adotado pela proprietária é o seguinte: “Basicamente, eu alugo um livro por cinco reais, a semana. Mas se você tem um livro, e você vai ficar na Pipa um tempo e quer ler, você me doa um livro e aí pode ler aqui gratuitamente”.

Uma personagem para escritor nenhum botar defeito, cheia de tramas, reviravoltas, múltiplos enredos, digna de ser o mote de um romance de realismo fantástico, Cíntia segue sua rotina, bem como seu pai queria: lendo, lendo e lendo. Abre o Book Shop às quatro da tarde e o deixa aberto até o “ultimo freguês”. Mas, acima de tudo, abraça o dia-dia com um sorriso franco oferecido aos visitantes. Sempre disposta a escrever uma nova página, um novo capítulo no livro da sua vida.
MATÉRIA PUBLICADA NA ÍNTEGRA NA REVISTA BRASILEIROS, Nº18/ ED. JAN/2009

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

O BECO DA QUARENTENA


Um dia desses, lendo um dos jornais da cidade, me deparei com um texto interessantíssimo. Enviado ao periódico por um sujeito chamado Elísio Augusto de Medeiros e Silva, o texto, intitulado “Passeio noturno à Ribeira”, tratava, com um saliente saudosismo, dos compassos flutuantes do velho bairro da Ribeira; suas histórias, seus contextos, suas acontecências.


E nas saudosas andanças literárias e físicas propriamente ditas de Elísio cheguei, junto com ele, “ao primeiro marco da antiga Ribeira: O Beco da Quarentena”, que por décadas, serviu como lugar de sexo barato, para os menos favorecidos. “A impressão que tive foi a de que o tempo tinha para e o “Beco” era filho enjeitado da bela cidade Natal.” De frente ao beco, o “eu - lírico” de Elísio percebeu ali “pedras revoltas, que estão no mesmo lugar, há dezenas de anos, portas abertas, escancaradas, sem a menor decência em seus humildes prédios, em ruínas”.


O Beco da Quarentena, na Ribeira, não é um beco. Na verdade, o local se chama Travessa da Quarentena e é uma ruela de passagem entre as ruas Chile e Frei Miguelinho. Conta-se que ali, a poucos metros do cais do porto, ficavam de quarentena os marinheiros que chegavam com doenças contagiosas e as pessoas da cidade já contaminadas. Depois o local virou ponto de prostituição. Muita gente perambula pela travessa e o Beco ficou como maldito. Reza a lenda que ninguém o cruza de uma ponta a outra.

Impressões do Beco

No livro "Breviário da Cidade do Natal", o escritor Manoel Onofre Júnior termina o trecho intitulado "A Zona" com o seguinte mote: "O velho beco, com seu 'claro mistério', continua maldito. As pessoas decentes o evitam, até mesmo durante o dia, como se o vissem ainda empestado”. Outro seduzido pelas histórias do Beco é o poeta Sanderson Negreiros. Nos versos “Aqui, arcos de sólido abandono / Restos da hora / Inúteis delíquios à luz dos círios de outrora”, o poeta faz uma ponte entre a poesia do passado e abandono atual do Beco da Quarentena.

O Cajá das Raparigas


‘Enjeitado’, o beco foi testemunha da vida boêmia da Ribeira. Ali, as risadas das mulheres da vida e dos boêmios deram lugar a um silêncio sepulcral. As portas, antes abertas para a alegria dionisíaca, hoje estão serradas. O “Beco” se transformou num lugar evitado por quem passa pelos arredores. O seu Elísio Augusto ainda arremata: “Todo este abandono, a um dos maiores sítios históricos de Natal, assistido, placidamente por um pé de cajá, que – (garantem!) – não foi plantado, nasceu, espontaneamente, naquele local e, na safra, os seus frutos são disputados na Ribeira, conhecidos como os “Cajás das Raparigas”“.

Crônicas do Beco


O jornalista e professor do curso de Comunicação Social da UFRN, Emanuel Barreto, num texto do seu livro “Crônicas para Natal”, registra o beco como o lugar onde “bêbados desvalidos faziam suas farras de desespero”. E os versos continuam... “Na Ribeira há um caminho torto, feio, escuro. É a Travessa da Quarentena, onde, há muito, muito tempo, os deuses desvairados do sexo barato faziam ali suas orgias. O Beco da Quarentena, como ficou nalembrança popular, é esse falido porão da cachaça barata e das mulheres de todos e de ninguém. Ali, vez por outra, passantes cortam caminho, num atalho sem futuro. Ali, quem sabe, nas noites da velha Ribeira, fantasmas de bêbados e marias se juntam. E dançam sua dança de cachaça.”