terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O SIGNO DA CIDADE







1 - Espelho antenado.
2 - O que sobrou da selva na selva de pedra.
3 - Uma rua cheia de tapetes?
4 - O caminho da luz.



Ao mesmo tempo ruína e eldorado, a cidade de São Paulo vai seguindo seu caminho como um verdadeiro catalizador de existências. Um ponto de convergência de tipos variados, sejam nacionais ou importados. Eu, como um verdadeiro cidadão híbrido, com um pé no cosmopolismo da cidade grande e, com o outro bem fincado nos bucólicos compassos flutuantes do sertão, sigo também o meu caminho, amando esta cidade, como quem ama um irmão transviado. Ou seja, minimizando, sobretudo, os defeitos, as ranhuras existentes.


Na cidade que é mais concreto do que qualquer outra coisa, vou buscando o qualquer outra coisa quando saio todos os dias pelas ruas munido com a minha singela câmera digital, um modelo hoje jurássico – com 5.0 mega pixels – mas que não me deixa na mão, me garantindo, pelo menos, o básico da composição fotográfica. Mas qual é o signo da cidade? O trânsito hiperbólico? A correria do tati-bitate contemporâneo? A torcida do Corinthians? O chop e os três pastéis? O cinza diário do firmamento? A indiferença aos espaços da metrópole? Talvez todas as alternativas sejam corretas, enfim. Minha proposta, então, é revisitar os “lugares-comuns”, desprovido das vendas que impedem uma apreciação mais sensível, ou melhor, fotossensível, digamos.

sábado, 10 de janeiro de 2009

DIFÍCIL É APRENDER A LER. O RESTO ESTÁ ESCRITO...








Imagens: Danilo Guanabara


A esquina do continente abriga uma praia que, há pouco tempo, não passava de uma acanhada vila de pescadores. Em duas décadas, essa paisagem bucólica mudou completamente e hoje o lugar se tornou um dos principais destinos turísticos do Brasil. Descoberta como um paraíso do surf em meados dos anos oitenta, a Praia da Pipa, lugarejo que fica a 85 km de Natal, passou a ser a morada de gente de todas as nacionalidades, como também o refugio da gaúcha Cíntia Junqueira, 44, que precisou dar praticamente à volta ao mundo pra descobrir o seu próprio paraíso.

Primeiras letras

Ler não era exatamente um prazer para a menina Cíntia. Principalmente quando era obrigada a decifrar Vitor Hugo ou Sartre e depois ser sabatinada pelo pai, com pouco mais de dez anos de idade. Nascida em Osório, no litoral gaúcho, filha de novos pobres, como ela mesma define sua família, Cíntia, querendo ou não, cresceu em meio à biblioteca do pai - um homem culto -, lendo, lendo e lendo. “Meu pai pegava os gibis, as revistinhas do Walt Disney e rasgava. Eu queria ler Mickey Mouse e, ao invés disso, eu tinha que ler Euclides da Cunha, já imaginou? Eu tinha 12 anos!”. A severa rotina literária durou até o dia em que resolveu ganhar o mundo.

Com a mochila nas costas, ela saiu de Porto Alegre ainda com 16 anos de idade. Passou por Garopaba, Rio de Janeiro, Ouro Preto, mas decidiu ir mais além. Aos 17, ela transformou a América do Sul em sua moradia. Trabalhando com aquilo que aparecesse, ela viveu na Argentina, no Chile, na Venezuela, no Equador – onde teve sua filha -, no Peru e na Colômbia, lugar onde começou a se envolver com drogas. “Depois disso eu fui pra Suíça, Espanha, Holanda, Alemanha, Itália... mas eu tava muito mal lá. Eu era traficante né, cara?”. “Sem nada na cabeça”, resumo que Cíntia faz de si mesma, ficou por um bom tempo fazendo a ponte-aérea entre Bolívia, onde comprava droga, e Itália, onde vendia. “Era barra pesada”, sintetiza.

Doze anos longe do Brasil. Cíntia viveu as dores e as delícias do mundo das drogas. No seu auto-exílio, “além de ganhar muito dinheiro”, como relembra, ganhou também o vício, fator que a deixou num lugar praticamente sem volta: o fundo do poço. Em 1994, ela se encontrava num bar, no País Basco, assistindo à final da Copa do Mundo, mas nem sequer percebeu quando Baggio perdeu o pênalti. Sob o efeito de drogas, não conseguia prestar atenção. “Eu estava babando em frente à televisão, aí chegou um cara pra mim – um espanhol – e perguntou de onde eu era e eu disse: sou brasileira”. Foi nesse encontro fortuito onde a vida de Cíntia tomou, mais uma vez, um rumo inesperado. Depois de saber que ela era brasileira, o espanhol esticou a conversa: “Você é uma idiota. Veio do país mais lindo do mundo, com praias maravilhosas e você aqui se matando. Tua seleção acabou de ganhar o Mundial e você nem piscou. Porque que você não vai embora? - insistiu ele – Você vai salvar a sua vida se você for embora daqui”.

O espanhol ainda deu o endereço completo. “Vá morar em Pipa, tem um amigo meu que mora lá, fica no Rio Grande do Norte”. Seguiu à risca os conselhos do desconhecido, mas sem esquecer de passar antes em Amsterdã, e só então embarcar para o Brasil portando uma boa quantidade de droga. “Cheguei em Pipa e virei a rainha do ácido. Dava ácido pra todo mundo, vendia... isso durou de agosto até novembro”. Para quem chegou do nada, sua saída foi ainda mais compulsória. Ela se viu flagrada com 500 drágeas restantes de um preparado denominado Lysergsäurediathylamid pelo químico Albert Hoffmann, no distante ano de 1938. Em outras palavras, os comprimidos eram de LSD.


Memórias do Cárcere

Outra mudança à vista. Presa na Penitenciária João Chaves, em Natal, o sofrimento foi uma constante durante os primeiros meses de prisão. Principal motivo? Abstinência de heroína, uma droga derivada do ópio, considerada uma das mais viciantes. Mesmo padecendo dos excessos cometidos, ela acabou percebendo outras realidades. “Eu era a única que sabia ler lá dentro. Então, as outras meninas sempre vinham pedir: Cíntia, escreve um bilhete pro meu namorado”. Com o tempo, ela se tornou uma espécie de Assistente Social das outras presas. “O diretor me chamou, me pediu pra que eu começasse a organizar os papéis das meninas... distribuir camisinha, fazer uma porção de coisa”.

Ajudando as outras pessoas na prisão, sem perceber, estava se ajudando também. “Eu já não tinha mais problema com droga. Eu praticava exercício, corria no campo. Comecei a mudar bastante. Tinha parado a heroína, a cocaína, todas as minhas dependências”. Em liberdade, depois de quase trinta meses de cárcere em Natal, Cíntia fez uma viagem libertadora - no sentido lato da palavra - para Pipa, onde, perto da praia e longe das drogas, redescobriu sua paixão pela literatura e promoveu a maior de todas as guinadas. “Eu queria mostrar que eu mudei. Eu tinha vivido tanta coisa na cadeia, eu precisava mostrar pras pessoas que agora era diferente. Trabalhei de garçonete, fiz faxina, eu fiz tudo que eu podia fazer, pra mostrar que eu tinha mudado”.

Enquanto atendia aos fregueses do bar onde era garçonete, numa tarde ensolarada qualquer da Praia da Pipa, Cíntia chegou a uma conclusão. Tinha capacidade para mais. Muito mais. “Eu perguntei pra mim mesma: o que é que eu vou fazer da minha vida?”. Já que estava começando do zero – ela ponderou – ia procurar fazer alguma coisa que realmente gostasse. “O que é que eu aprendi desde pequena”? Essa foi a segunda indagação que se fez. A resposta veio no ato: “Eu sei ler”. Depois da descoberta, alguns amigos aconselharam Cíntia a abrir um sebo.

Book Shop – Uma biblioteca comunitária

Em meados de 1998, ela fez o seguinte: “Com o primeiro salário que eu recebi do bar, eu aluguei uma casa, peguei os dez livros que eu trouxe da prisão e coloquei numa prateleirazinha em frente à garagem”. Em meio à exuberância da Praia da Pipa, nascia ali o Book Shop. Um espaço dedicado à cultura e, sobretudo, à literatura. “As pessoas foram passando na frente do lugar e começaram a me perguntar: Cíntia, você gosta de livros? Você quer livros?”. Abrindo as portas com apenas dez volumes, com o passar do tempo, o Book Shop foi crescendo através de doações, formando um acervo que hoje conta com mais de 2.000 livros. Assim, criou-se em Pipa um verdadeiro ponto de convergência. Um lugar onde se pode alugar livros, jogar xadrez e onde as pessoas da comunidade se encontram para discutir sobre os compassos flutuantes da Praia da Pipa, mas, sem esquecer da literatura.

Em 2004, porém, depois de alguns anos de pleno funcionamento, esse espaço fechou. Com o contrato de locação vencido e sem dinheiro para renovação, o jeito foi encaixotar os livros e dar adeus ao Book Shop. Felizmente, isso durou um mês apenas. “Cadê o Book Shop, Cíntia?”, queria saber José Morais, dono de uma pousada na cidade. Cíntia explicou a situação “quixotesca”, como ela adjetiva, e o amigo tratou de dar o jeito em tudo. “Eu tenho um lugar e você vai pra lá. Não se preocupe com nada. Nem água, nem luz. O Book Shop vai ser lá”, José Morais sentencia.

Gentilezas à parte, o Book Shop tem a capacidade de concentrar o mundo todo em poucos metros quadrados. Numa das paredes estão expostos quadros com imagens dos autores prediletos de Cíntia: Oscar Wilde, Thomas Mann, José Saramago, Albert Camus, Dante Alighieri, Jorge Luis Borges, Garcia Márquez, Franz Kafka, Julio Cortázar, Fiódor Dostoiévski, Reinaldo Arenas e Guimarães Rosa. Além da decoração alternativa e muito charmosa, o lugar aglutina livros de toda natureza e em vários idiomas, fruto do escambo com os estrangeiros. Obras raras e antigas como Guerra e Paz, de Tolstoi, original em russo e uma coleção do francês Visconde de Chateaubriand, publicada em 1806, podem ser encontradas por lá. Mas, além das milhares de histórias que povoam as dezenas de prateleiras, o Book Shop tem ainda espaço para algumas excentricidades da dona.

O bicho de estimação de Cíntia é uma gatinha cujo nome é Mafalda, uma homenagem à personagem criada pelo cartunista argentino Quino, nos anos 60. “Ela apareceu aqui e foi ficando, foi ficando... acho que ela queria aprender a ler”, satiriza. Aos livros que julga transparecer uma literatura menor, só resta um destino: a forca. O castigo medieval não deixa de fora nomes como Sidney Sheldon, John Grishan, Dan Brown e nem o imortal Paulo Coelho. Por causa dessa prática, o teto do Book Shop é repleto de alfarrábios pendurados pelo “pescoço”, fato que causa estranhamento e curiosidade por parte dos visitantes. “E esses livros pendurados aqui no teto?”. Essa é uma pergunta que sempre se repete, mas que Cíntia nunca se cansa de responder. “Ah, porcaria eu enforco”, ela resume de maneira taxativa.

Completando uma década de existência e freqüentado por pessoas do mundo todo, o Book Shop fica no coração da Praia da Pipa, numa viela arborizada cujo nome é Beija-Flor. Mais literário - impossível. E o método adotado pela proprietária é o seguinte: “Basicamente, eu alugo um livro por cinco reais, a semana. Mas se você tem um livro, e você vai ficar na Pipa um tempo e quer ler, você me doa um livro e aí pode ler aqui gratuitamente”.

Uma personagem para escritor nenhum botar defeito, cheia de tramas, reviravoltas, múltiplos enredos, digna de ser o mote de um romance de realismo fantástico, Cíntia segue sua rotina, bem como seu pai queria: lendo, lendo e lendo. Abre o Book Shop às quatro da tarde e o deixa aberto até o “ultimo freguês”. Mas, acima de tudo, abraça o dia-dia com um sorriso franco oferecido aos visitantes. Sempre disposta a escrever uma nova página, um novo capítulo no livro da sua vida.
MATÉRIA PUBLICADA NA ÍNTEGRA NA REVISTA BRASILEIROS, Nº18/ ED. JAN/2009

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

O BECO DA QUARENTENA


Um dia desses, lendo um dos jornais da cidade, me deparei com um texto interessantíssimo. Enviado ao periódico por um sujeito chamado Elísio Augusto de Medeiros e Silva, o texto, intitulado “Passeio noturno à Ribeira”, tratava, com um saliente saudosismo, dos compassos flutuantes do velho bairro da Ribeira; suas histórias, seus contextos, suas acontecências.


E nas saudosas andanças literárias e físicas propriamente ditas de Elísio cheguei, junto com ele, “ao primeiro marco da antiga Ribeira: O Beco da Quarentena”, que por décadas, serviu como lugar de sexo barato, para os menos favorecidos. “A impressão que tive foi a de que o tempo tinha para e o “Beco” era filho enjeitado da bela cidade Natal.” De frente ao beco, o “eu - lírico” de Elísio percebeu ali “pedras revoltas, que estão no mesmo lugar, há dezenas de anos, portas abertas, escancaradas, sem a menor decência em seus humildes prédios, em ruínas”.


O Beco da Quarentena, na Ribeira, não é um beco. Na verdade, o local se chama Travessa da Quarentena e é uma ruela de passagem entre as ruas Chile e Frei Miguelinho. Conta-se que ali, a poucos metros do cais do porto, ficavam de quarentena os marinheiros que chegavam com doenças contagiosas e as pessoas da cidade já contaminadas. Depois o local virou ponto de prostituição. Muita gente perambula pela travessa e o Beco ficou como maldito. Reza a lenda que ninguém o cruza de uma ponta a outra.

Impressões do Beco

No livro "Breviário da Cidade do Natal", o escritor Manoel Onofre Júnior termina o trecho intitulado "A Zona" com o seguinte mote: "O velho beco, com seu 'claro mistério', continua maldito. As pessoas decentes o evitam, até mesmo durante o dia, como se o vissem ainda empestado”. Outro seduzido pelas histórias do Beco é o poeta Sanderson Negreiros. Nos versos “Aqui, arcos de sólido abandono / Restos da hora / Inúteis delíquios à luz dos círios de outrora”, o poeta faz uma ponte entre a poesia do passado e abandono atual do Beco da Quarentena.

O Cajá das Raparigas


‘Enjeitado’, o beco foi testemunha da vida boêmia da Ribeira. Ali, as risadas das mulheres da vida e dos boêmios deram lugar a um silêncio sepulcral. As portas, antes abertas para a alegria dionisíaca, hoje estão serradas. O “Beco” se transformou num lugar evitado por quem passa pelos arredores. O seu Elísio Augusto ainda arremata: “Todo este abandono, a um dos maiores sítios históricos de Natal, assistido, placidamente por um pé de cajá, que – (garantem!) – não foi plantado, nasceu, espontaneamente, naquele local e, na safra, os seus frutos são disputados na Ribeira, conhecidos como os “Cajás das Raparigas”“.

Crônicas do Beco


O jornalista e professor do curso de Comunicação Social da UFRN, Emanuel Barreto, num texto do seu livro “Crônicas para Natal”, registra o beco como o lugar onde “bêbados desvalidos faziam suas farras de desespero”. E os versos continuam... “Na Ribeira há um caminho torto, feio, escuro. É a Travessa da Quarentena, onde, há muito, muito tempo, os deuses desvairados do sexo barato faziam ali suas orgias. O Beco da Quarentena, como ficou nalembrança popular, é esse falido porão da cachaça barata e das mulheres de todos e de ninguém. Ali, vez por outra, passantes cortam caminho, num atalho sem futuro. Ali, quem sabe, nas noites da velha Ribeira, fantasmas de bêbados e marias se juntam. E dançam sua dança de cachaça.”