quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Quando a esmola é demais...













Imagens: Eduardo Felipe

“Era uma casa
 muito engraçada
, não tinha teto, 
não tinha nada. 
Ninguém podia entrar nela, não. 
Porque na casa não tinha chão
. Ninguém podia dormir na rede
. Porque na casa não tinha parede. 
Ninguém podia fazer pipi. 
Porque penico não tinha ali. 
Mas era feita com muito esmero, na rua dos bobos
, número zero”. A letra bonitinha de Vinícius de Moraes é o retrato fiel dos moradores da antiga Favela do Fio, hoje apelidada por eles de “Cidade de Deus”, dada a urbanização mambembe ofertada pela Estado nos ultimos meses. Talvez não seja bonitinha, na verdade…

Quem vinha do chamado KM 6 em direção à Rodoviária, ou vice-versa, se daparava com umas das favelas de maior visibilidade de Natal. Curioso pelo suposto sumiço, resolvi visitar a área e descobrir o que diabos tinha acontecido. Na verdade, depois de demolirem centenas de barracos, a população foi deslocada para uma região bem próxima – cerca de 300 metros - mudando a “favela” praticamente de um lugar para outro. Embora as novas moradias sejam feitas de alvenaria, a urbanização não acompanhou a mudança. As 310 unidades habitacionais foram entregues, em grande parte, sem portas e janelas.

Com as casas ‘meia-boca’, os moradores precisam usar a criatividade e o que encontram pela rua, já que muitos deles são carroceiros. Pedaços de madeira e papelão servem para proteger as casas do vento, da chuva e do sol. Além disso, não existem ruas, saneamento básico e nem iluminação. As cerca de 200 famílias dividem três torneiras para prover as residências de abastecimento de água. A dona de casa Maria Severina de Souza conta que nas primeiras horas do dia há uma verdadeira disputa pelo mineral. Dezenas de pessoas chegam a causar tumulto para encher os baldes primeiro. “A gente usa essa água para tudo: cozinhar, lavar roupa e tomar banho. Mas aqui como não tem rede de esgoto, a gente faz a necessidade no mato”, aponta a moradora.

De frente ao esqueleto do que seria um enorme hospital estadual, a população reclama da falta de posto de saúde. Escola, delegacia e, principalmente transporte são outras demandas. É mais um lugar do não. “Aqui nós estamos esquecidos. Tiraram a gente de um lugar que não tinha futuro e colocaram em outro. A gente precisa caminhar no escuro vindo do ponto de ônibus mais próximo”, explica a feirante Maria Gomes da Silva, 62. Ela diz ainda que o caminho, na verdade uma estrada carrocável, não tem iluminação, o que tornam as travessias diárias bastante perigosas.

A moradora acusa também os valores das contas de energia. Embora não conte com iluminação nos postes que ficam em frente a sua casa, ela conta que têm apenas um “bico de luz”, uma geladeira e uma televisão e teve que pagar uma conta de R$ 95,00 no último mês. “Se continuar assim, ninguém vai ter condições de manter essa energia e vai partir para os gatos (ligações clandestinas)”, relatou.

Se vira nos 30

No lugar onde havia a favela, ficaram os destroços dos barracos, além de lixo, que vem sendo depositado dia-dia por carroceiros. Em meio aos materiais que antes foram moradias precárias, Isaac Ferreira da Silva, 24, junta tijolos. Ele explica que vai vender o que for reaproveitável. “A gente tem que se virar de todo jeito. Daqui eu já consigo tirar algum dinheiro”, explica. O morador, que não se “beneficiou” com as novas casas, defende a necessidade da construção de uma área de lazer no lugar. “Se não colocar alguma coisa para distrair as crianças principalmente, não vai adiantar muito”, afirma.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Os desvalidos da Bernardo Vieira



A cracolândia é uma ferida aberta em pleno centro de São Paulo. Próximo à Estação da Luz, uma grande leva de gente sem futuro esfola as pontas dos dedos fumando a pedra em latas de refrigerante e cerveja. Em Natal, dadas as devidas proporções, já temos algumas pequenas cracolândias em processo de franca expansão. Aos olhos de lupa dos incautos potiguares, uma meia-dúzia de pessoas já representa o mundo todo. São recortes de existências, na verdade.

O núcleo duro fica ali pelas cercanias da Avenida Jaguarari com a Bernardo Vieira. Numa olhada rápida, pelos menos dez pessoas - entre velhos, adultos e crianças - vivem sob as marquises de uma loja de produtos para casa (de gente rica). Se alimentando de sobras e dormindo praticamente ao relento, o grupo toma banho ocasionalmente e utiliza um terreno baldio como banheiro.

Para Gilberto Moreira de Lima, 54, “morar da rua parece que é um vício”. Embora tenha raízes no município de Brejinho, ele prefere morar dessa maneira. “Eu já tive três mulheres e tenho quatro filhos. Mas a minha última esposa me deu várias facadas ai depois disso eu vim morar na rua”, relata. Há pelo menos uma década Gilberto perambula pela cidade de Natal e há cerca de quatro meses permanece no mesmo local.

Inquietante, doloroso e cansativo. Pedindo esmolas nos sinais de trânsito que ficam próximos, ele afirma que consegue comprar algum alimento de vez em quando. Na maioria dos casos, pede as sobras de comida em bares e restaurantes. No momento em que estive no local, Gilberto comia o que pareciam ser bordas de pizzas. Questionado sobre se queria sair das ruas, ele disse já não saber mais. “Já estou acostumado”, resumiu. Enquanto Gilberto recita suas vidas, percebo que o cheiro de urina é forte no local. Mesmo assim, permaneço no ambiente, assim como o grupo, todo ele dormindo. Só Gilberto está de pé. Colchões velhos, caixas de papelão e roupas rasgadas resumem os pertences dos moradores.

Há consumo de crack e ainda relações íntimas entre o grupo, do qual duas mulheres fazem parte. Uma lástima. São eles um conjunto de registros etnográficos apurados ao longo dos anos? Pobres e maltrapilhos, bem como as personagens de Victor Hugo. Porém, nessa vida real, as personagens não apresentam redenção ou ascenção. Fome e miséria têm papel de destaque.

Fotos - Eduardo Felipe