quarta-feira, 19 de maio de 2010

O que sobrou do céu...


Enquanto desempenhava a minha função de repórter e aguardava a chegada de alguns gatos pingados da FIFA para vistoriar o início das obras para a Copa de 2014, um vento um pouco mais forte acabou derrubando uma barra de ferro (parte da estrutura de uma barraca) bem na minha cabeça. Não cheguei a cair e não chegou a cortar minhas têmporas. Apenas um galo latejante se fez presente. Alguns colegas vieram a meu socorro imediatamente: “Está tudo bem”? – diziam alguns repórteres e fotógrafos em coro oníssono.

Poucos segundos depois, uma assessora do governo veio em minha direção. Não houve muita conversa. Fui parar no Walfredo Gurgel, onde meu tratamento foi VIP por se tratar de uma assunto de “governo” – já imaginaram? Pela primeira vez andei em cadeira de rodas, tirei Raio – X e entrei em um hospital como paciente e não como bisbilhoteiro inquisidor. A sensação foi um pouco estranha.

Raio – X de cabeça, coluna, remédio na veia para diminuir minha dores e relaxante muscular. Depois de algumas horas, já estava em casa de papo pro ar, deitado e fazendo manha pra mamãe. Barganhei a compra de um pote de sorvete. Durante o dia, recebi dezenas de ligações. Algumas, malhando da minha cara. Outras desejando melhoras, apenas. O ferro na cabeça rendeu até charge em jornal. Afinal, ferro na cabeça dos outros é refresco...

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Quando um criminoso é quase santo.

João Rodrigues Baracho. Vulgo Baracho. Para quem não conhece, era o terror de Natal no início dos anos 60. Matou, roubou. Fez o diabo. Sempre com muita desfaçatez, tinha uma predileção doentia pelos taxistas. Mas como ninguém explica a crendice popular, Baracho é tido por alguns como santo. Seu túmulo no cemitério do Bom Pastor em Natal, recebe velas, ex-votos de promessas e até garrafas de cachaça, muito apreciada por Baracho, garantem seus devotos.

O próprio Baracho, numa entrevista ao Diário de Natal ao ser preso em 1961, contou que havia chegado à capital potiguar no ano anterior, e que havia encontrado aqui um ambiente propício que lhe permitiu, em menos de um ano, trocar a vida de pedreiro por uma sólida situação financeira. Ampliou seu raio de ação pelo interior do Estado comprando terras com o lucro que obtinha de seu labor insano. Porém, foi pego desprevenido após ter dado cabo do motorista de táxi, Moisés Luis do Nascimento, em agosto de 1961. Baracho e seu comparsa Cosme Vieira estavam escon- didos em sua propriedade em Monte Alegre.

Com sua prisão, outros crimes foram elucidados e divulgados pela imprensa. A ele, foram atribuídos a autoria de três assassinatos. Além de Moisés, o único crime de que se diz réu confesso, foram mortos Cândido Ferreira e Antônio Carlos de Souza. Os três ho- micídios aconteceram num prazo inferior a nove meses. A vida de Baracho fez parte da crônica policial da época com freqüência destacada. Sabia-se onde tinha terras, quantas amantes e até sua preferência pela literatura de cordel.

Preso na Delegacia de Furtos e Roubos, enquanto os seis homens que faziam a sua guarda dormiam na madrugada do dia 29 de maio de 1962, Baracho serrou uma das grades e pegou o beco. Sem a preocupação de se esconder, voltou ao bairro onde morava para procurar sua companheira, na manhã seguinte, onde foi visto por um policial nas cercanias do Morro da Cabocla (?). Ao cair à noite de 30 de abril, foi assassinado no cruzamento das ruas Jundiaí com a Coro- nel Estevam, no bairro do Carrasco (atual Dix-Sept Rosado) próxima à vila onde residia Maria Lúcia, uma de suas amantes.

Antes de morrer, porém, já com duas balas no corpo, tentou guarida na casa de uma vizinha, onde penetrou sorrateiro. Descoberto, pe- diu que o acoitasse e lhe desse água. Ao invés disso, Maria Batista, a vizinha em questão, o caguetou à polícia. Quando finalmente foi cercado, não foi preso. Foi fuzilado. O laudo cadavérico aponta: 22 ferimentos à bala – sete atravessaram seu corpo, oito o penetraram e sete tangenciais. Todos calibre 38. O pedido de água negado foi a porta para sua santificação mambembe. Baracho foi escorraçado e por fim dedurado quando, no limite de suas forças, apelou à soli- dariedade de uma antiga vizinha, enquanto se esvairia em sangue. A suposta desumanidade da vizinha deu origem ao traço singular de seu culto no cemitério: sobre seu túmulo repousam vasilhas cheias de água, ofertadas pelas pessoas que lá vão rezar por ele e pedir graças ou pagar promessas.

O finado criminoso passou a ser uma espécie de santo informal que arrasta, não multidões, mas alguns fiéis mesmo depois de quase 50 anos do facínora ter desencarnado.

Gente como dona Maria da Silva Araújo, 67, que defende que o bandido morreu de uma forma muito triste. Há cerca de quinze anos, ela é responsável por zelar pelo jazigo de Baracho, e observadora atenta de tudo o que se passa pela sepultura do bandido. “Em dias de finados, é muita gente que vem aqui. Tens uns que trazem comida e vela que não acaba mais, só falta pegar fogo em tudo”, conta. Entre uma flor regada e outra, ela relata que chega a dormir no cemitério na véspera do dia dos mortos. “O movimento aqui é grande”, sinte- tiza. Para fazer frente à popularidade de Baracho no cemitério, só mesmo o túmulo do cantor Carlos Alexandre, ícone do brega, autor de músicas como “Feiticeira”. “O povo até se reúne e fica cantando no túmulo do cantor, mas nesse aqui vem muito mais”, dispara. “As vezes deixam uns vasos bonitos, as coisas mais lindas, mas o povo vem e carrega”, acusa a zeladora. “Teve uma mulher que disse que tinha uma dor no peito, que pensava que era um caroço, pediu a ele a cura e teve a graça alcançada. Depois desse dia, ela vem sempre fazer visita e fazer orações para ele”, reforça.

Além das garrafas de água, ex-votos de graças alcançadas, esta- va um pedido curioso. Traída pelo marido e devendo aos agiotas, Francisca Silva pedia, sobretudo, sorte num bilhete deixado na se- pultura de Baracho. Com algumas frases escritas em tinta vermelha num pedaço qualquer de papel, o pedido era o seguinte: “Que você me ajude e me dê um pouco de sorte, porque só sorte, muita sorte Baracho. Meu marido me traiu, eu devo à agiotas e lojas e tudo o que eu quero é me libertar dos agiotas”.

Residindo sob a alcunha do profano e do sagrado, Baracho foi de um ponto ao outro da existência. De pedreiro à feirante, de feirante à vendedor de maconha e, depois assaltos, furtos, arrombamentos, em sua maioria, nos bairros do Alecrim, Carrasco e Quintas, até se tornar o mais famoso latrocida da cidade, Baracho morreu aos 32 anos, ironicamente já personagem de livrinhos de cordel e com o nome santificado na boca das pessoas.

Texto publicado originalmente no fanzine Lado [R] # 9, abril de 2010.

(www.ladoerre.com)