quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O mestre da Chapada
















Mil e quatrocentos quilômetros separam a cidade do sol, na esquina do continente, de Lençóis, no interior da Bahia. O método utilizado para encurtar essa distância não foi dos mais prosaicos. Vinte quatro horas de viagem num Monza 1.8, ano 93, 2 pneus furados na estrada, quatro garrafas d’água, algumas barras de cereal, conversa fiada e voilá. Chegamos à Chapada Diamantina. Um parque de diversões do tamanho da Holanda que guarda segredos e abriga figuraças como o nosso guia, Raimundo Reguela, que até hoje, sem menções honrosas, vivia apenas naquela geografia de pedras e saltos esculpidos no vão do espaço. Hoje, sua história, pelo menos um breve fragmento dela, segue contada sob a verve ladoerreana, que mandou para Chapada uma trupe invocada de nobres aventureiros. Com vocês, o menestrel das trilhas, Raimundo Reguela.


Como todo bom baiano, Raimundo Reguela teve preguiça. No caso dele foi preguiça de nascer. Esperou até o último dia no ano para vir ao mundo, mas chegou. Embora pequeno na estatura – não passa de um metro e sessenta – é ‘gigante pela própria natureza’. Criado na mandinga do Candomblé em terreiros da Chapada Diamantina, no interior da Bahia, com quatro décadas de vida nas costas, Reguela é guia nas trilhas que levam a verdadeiros paraísos na terra. Tendo como quintal a imensidão de serras, rios e cachoeiras, a vida conservou feições de menino no homem Reguela. A idade percebida é muito menor do que os quarenta anos que possui. O elixir da juventude é o meio-ambiente e a distancia em que vive da urbe. Vai à “rua” somente para ir atrás de mais trilheiros e receber o dinheiro do aluguel de três casinhas que possui em Lençóis, uma das portas de entrada para a Chapada.


Palmilhando as trilhas a bordo de um par de chinelos Havaianas, Raimundo segue com um quente e dois fervendo. É quase impossível segui-lo de perto. Sabe toda a filosofia do mato e conhece cada palmo dos campos gerais, cerrados, matas e capões. Seus movimentos, a despeito do Chapolin Colorado, são “friamente calculados”. Entre os rios da bacia Paraguaçu, do Jacuípe e do Rio de Contas, Reguela já deu de cara com onças-pintadas e suçuaranas, capivaras, preás e mocós, além de bichos mais sorrateiros, como sucuris e jibóias. O medo não lhe faz companhia. “Tenho o corpo fechado”, afirma com veemência.


Cicerone como poucos, Reguela nos levou para um contato imediato com a soberana Cachoeira da Fumaça. Mesmo com o reinado de maior do Brasil constestado, os 380 metros da queda impõem respeito a quem lhe empresta as vistas. Os caminhos em baixo da Cachoeira envolvem os viajantes em um interminável jardim de bromélias e orquídeas, decorando com criatividade as fissuras rochosas, escorregadias e extremamente perigosas. Sem falar de outras plantas, “medicinais”, na voz de Raimundo, que só visitou um hospital uma única vez na vida, quando perdeu a falange do polegar da mão direita. Os outros percalços que o destino lhe infligiu foram curados com ervas manuseadas pela sua mãe, que também é Mãe de Santo. A propósito, é Reguela quem dá ritmo aos tambores quando tem ritual de Candomblé no mês de setembro.
E por falar em ritmo, o rojão imposto pela guia é pesado! O interessante é que não se vê Raimundo suando uma gota sequer, nem tampouco tomando água. Se abastecia somente nos pontos de apoio, distantes um do outro pelos menos 6 horas de caminhada forte. Taifeiro de mão cheia, Reguela levava toda comida do grupo na mochila – bem maior que ele – e, preparava a bóia nunca esquecendo do tempero baiano. Pimenta.


De volta ao leito úmido de diversos rios, composição de grande parte da complicada trilha, cada passada revelava um novo detalhe. Até mesmo os acidentes de percurso foram verdadeiros aprendizados. Afinal, quase cair em um abismo de 200 metros de profundidade “se não matar, aleija”, diz o ditado. Desprovido de calçado apropriado e afoito como menino pela primeira vez num açude, teve um rapaz que passou direto numa curva e só não ‘se passou’ porque teve o ímpeto de se agarrar ao mato da encosta e também porque este vulgar escriba foi ao seu socorro com a ajuda de Reguela. Detalhe: O cara ia morrendo mas não parou de rir um minuto sequer. É preciso rir da morte. Seria este o ensinamento? No conforto do lar e ao mesmo nível do oceano, o pensamento vagueia por entre as alamedas de pedra e faz da Chapada Diamantina e do Mestre Reguela, lembranças perenes e combustível para novas possibilidades. Epa-hei Oyá!
Fotos: Filipe Mamede (Cachoeira da Fumaça, Morro do Pai Inácio)