sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

DESBUNDE CULTURAL NA CIDADE DO SOL

Cedo ou tarde as mudanças chegariam. E chegaram mesmo. No final da década de 70, pelo menos num pedaço de praia chamado até então de Praia do Meio, as transformações foram alucinantes. Se de um lado ficava Areia Preta como um espaço natural dos mais abastados, do outro, ficava a Praia do Forte com suas piscinas naturais e a boa família natalense passeando pra lá e pra cá. A Praia do Meio, na sua condição de ser do meio, deixava que viessem a ela as classes mais baixas e a juventude que precisava de um lugar para extravasar.
Eram tempos de “power” e “flower”, bocas de sino e biquínis de crochê. Mutantes, Caetano e Gil. Discos dos Beatles, Pink Floyd e dos Rolling Stones evaporavam das prateleiras. Um verdadeiro ponto de ebulição extrapolou as areias quentes daquela beira-mar, agora um sinônimo de efervescência. Nascia ali a Praia dos Artistas. Uma faixa de terra banhada pelo Atlântico que passou a receber com mais vigor, dezenas, centenas, milhares de anônimos que queriam um lugar ao sol. A jeunesse dorée, antenada, possibilista, como diz o artista plástico Marcelus Bobs, estava concentrada naquele espaço. Eram universitários, atores, dançarinos, artistas plásticos, poetas, ensaiando o que ia ser a época de ouro da cultura da cidade.

Movimento hippie, baseados, “Eu sou apenas um rapaz”, “Como nossos pais”... Em frente ao Bar Caravela, de microfone em punho e soltando gírias pra todo lado, Big Terto (Tertuliano Pinheiro) organizava campeonatos de surf que deixavam a praia com um colorido diferente. Moças com pouquíssima roupa e rapazes fogosos disputavam cada metro quadrado do lugar. Bares como o Tirraguso, o Artmanhas, a Casa Velha se enchiam de rostos jovens.
E não parava por aí. Tinham as barracas de praia, ainda na areia, como a famosa “Barraca da Marlene”, para quem quisesse sentir a brisa do mar mais perto. “Era nas barracas que nos reuníamos para compor as melodias do Gato Lúdico, eu, Jaime Figueiredo, Carlos Lima e Claudio Damasceno. Lá vivíamos noitadas acompanhados do violão, dos mixes de cachaça com cerveja e tiragosto”, lembra o arquiteto e artista plástico Vicente Vitoriano. As barracas acabavam sendo, portanto, verdadeiros locais de criação, para os membros do Gato Lúdico, uma grupo músico-teatral que marcou a cena natalense à lá Língua de Trapo, uma espécie de Mamonas Assassinas da época.
Enquanto a Praia era o terreno fértil do desbunde hippongo natalense, no Brasil, a Ditadura Militar queimava ainda seus cartuchos vigiando o povo e censurando as artes por aí. Em 1977, o Presidente General Ernesto Geisel, com seu famigerado Pacote de Abril, teve a brilhante idéia de dissolver o Congresso Nacional e legislar por ele mesmo. Esse foi o estopim que instigou naqueles jovens um abalo inquisidor. O primeiro deles foi o poeta, escritor e artista plástico, Eduardo Alexandre. “Naquele momento, foi que me veio o impulso de ir ao muro e protestar contra todo aquele absurdo. Comecei a preparar material para as primeiras exposições, a partir de oficinas que fazia no quintal lá de casa, com o pessoal da minha rua e adjacências do bairro do Tirol.”
Galeria do Povo
A partir dali, Eduardo Alexandre e outros inconformados deram vida a um dos mais importantes movimentos de contestação política e engajada através da arte. A Galeria do Povo, como era conhecida, era um movimento artístico a céu aberto, que realizava exposições espontâneas de poesias, crônicas, artigos, recortes de jornais e revistas, artes visuais, esculturas e faixas de manifestações políticas; e tudo isso, ali na Praia dos Artistas. Com mais de 200 exposições entre os anos de 1977 a 1986, nos muros da Galeria do Povo travou-se uma luta permanente contra a ditadura militar, expondo o descontentamento do povo com as suas iniciativas e juntando-se a lutas como a da retomada da caminhada democrática, da anistia, das eleições diretas, entre outras tantas. As exposições eram realizadas aos sábados e domingos a partir das 10h, “e nós não repetíamos trabalho, obrigando o pessoal a produzir sempre, para que tivessem seus trabalhos expostos”, lembra Alexandre.
As exposições eram, portanto, sempre diferentes, inéditas, e normalmente traziam uma palavra de ordem em forma de faixa de manifestação ou em letras recortadas de papel e afixadas ao muro. “Por uma democracia verdadeira, por um Brasil feliz!”; “Ao povo brasileiro, o direito de escolher os seus próprios destinos: pela convocação da Assembléia Constituinte!”, por exemplo.
O caráter político da Galeria era tão evidente, que os artistas criaram o Partido do Povo Brasileiro, mas, enganada pela verrina demagoga, a agremiação acabou sendo surrupiada. “Chegamos inclusive a criar um partido, depois registrado por um grupo que não oferecia a menor confiança, da mais legítima direita, a mando do então presidente Zé Sarney, que quis transformar o partido de sustentação da ditadura, a Arena, neste Partido do Povo Brasileiro que criamos aqui. O registro foi efetuado por um testa-de-ferro, a mando de Sarney”, esbraveja Eduardo Alexandre.
Citar os nomes dos participantes que passaram pela Galeria do Povo, Eduardo diz “que é certeza de muita omissão”. Mesmo assim, o artista plástico insiste: “Lembro de Fernando Gurgel, Assis Marinho, Novenil Barros, Nelson Quinderé, Nival Mendes, Ênio de Góes, João Natal (assinava João Maria, à época), Léo Sodré, Marcelo Fernandes, Marcelus Bob, Flávio Américo Novaes, Pedro Pereira, Valderedo Nunes, tantos, estes nas artes plásticas. Giovani Sérgio, Marcus Ottoni, Argemiro Lima, João Maria Alves, na fotografia foram alguns destaques. Marize Castro, Volontê, João da Rua, Flávio Resende, alguns dos poetas que mostraram ali seus versos pela primeira vez. Lembro também nomes como os de Sofia Gosson, Aluízio Matias, Dorian Lima, Venâncio Pinheiro, João Barra, Harrison Gurgel, Deoborah Iskin Costa, hoje Milgran, Mário Henrique Araújo, Talvani Guedes da Fonseca, Jota Medeiros, Clotilde Tavares, Carlos Jucá, Alamilton Lima, Marconi Ginani, Carlos Astral, João Gothardo Emerenciano, os irmãos Lola, Fon, Eustáquio... É muito difícil lembrar de todos”.

Seja como for, nos muros da Galeria do Povo foram pregadas idéias de contestação e conscientização política através da arte. “A liberdade que exercíamos na Galeria do Povo, contrariamente àquela repressão toda, era um apelo e um incentivo à grande participação que o movimento alcançou”, deixa claro Eduardo Alexandre. Terra de poucos artistas até então, ou pelo menos, não conhecidos, com a Galeria do Povo, “estes foram surgindo às dezenas, multiplicando-se em todas as áreas de manifestações artísticas”. Com a Galeria funcionando todos os finais de semana no local de maior afluência popular da cidade, que era a Praia dos Artistas, “o surgimento de outros eventos ocorreu e muitos grupos se formaram a partir daqueles encontros de pé de calçada”.

Festiva do Forte

Na Praia dos Artistas, a picardia inconformada dos vários tipos que circulavam por lá continuava sendo uma pedra no sapato dos incautos. Enquanto isso, num apartamento dividido por Sandoval Fagundes, artista plástico paraibano, com o músico potiguar Luiz Lima - Lola para os mais chegados – era discutido, numa tarde de 1978, o que seria o embrião do Festival do Forte, um evento que acabou sendo o epílogo da tamanha ebulição contra-cultural que era a cidade no final de década de setenta. “Foi conversando com Sandoval que surgiu a idéia de fundar uma “cooperativa de artistas”, partindo da constatação da total dificuldade que encontrava quem pretendesse viver de, ou mesmo simplesmente fazer, arte em Natal”, lembra Luiz Lima.
Ele relata que o objetivo inicial era a obtenção de alguns meios de produção, como aparelhagem de som, equipamento para serigrafia, entre outras coisas. A vontade deles era que se alcançasse “uma autonomia em relação aos órgãos oficiais da cultura”, já que, segundo Luiz, havia uma dependência excessiva, sobretudo, quando queriam “realizar algum trabalho, como um show ou uma exposição de pintura”. O festival surgiu, então, como um ponto de partida, um modo de lançar o projeto da cooperativa. “Deveria ser um festival no sentido de festa mesmo, livre da idéia da competição e prêmios, mas uma ocasião onde artistas de diferentes áreas pudessem se encontrar, mostrar seus trabalhos, como numa quermesse, uma feira”.

O nome seria Festival de Artes do Natal, conforme foi escrito no primeiro cartaz. Desenvolvido graficamente e impresso em serigrafia por Sandoval Fagundes (a partir do desenho que Luiz Lima havia feito), o panfleto tinha o número 1978, o mar, um barco à vela e a pomba branca da paz, numa clara referência a Woodstock. “No cartaz se lia ainda, promoção: Popularte - o primeiro nome que demos à cooperativa -, alternativa às artes nativas. Foi com essas idéias que começamos eu (Luiz Lima), Sandoval e Carlos Gurgel, que tinha aderido ao projeto, a organizar o evento”. Entre os muros, guaritas e calabouços da Fortaleza dos Reis Magos, o Festival começou a todo vapor naquele 30 de dezembro de 1978. Construído à base de óleo de baleia, bronze e pedras de granito vindos do além-mar, naquela noite de lua cheia, as muralhas centenárias do Forte deixaram de ser mais um ponto turístico e comungaram de um outro propósito: celebrar as artes e servir como um ponto de convergência daqueles que não eram “caretas”.

“De fato, como depois ficou evidente, não poderia haver um local mais adequado para uma proposta como aquela, dentro daquele espírito libertário que ainda perdurava na época, que nos inspirava e que pretendíamos aferir ao festival”, analisa Luiz Lima. Contando com música, dança, artes plásticas, artesanato, fotografias apresentações teatrais e até comida macrobiótica, a primeira edição teve a duração de um dia apenas, mas deixou muitas histórias pra contar. “O movimento foi uma verdadeira epopéia... uma odisséia... tornaram a realidade uma loucura”, diz o poeta e escritor Carlos Gurgel esfuziado. Com o propósito de acabar com a inércia cultural que havia no lugar, o Festival, segundo Gurgel, “dava uma trabalheira danada pra organizar”. “A gente criou uma dinâmica tão incrível pra que aquilo acontecesse. A gente passava o ano todo elaborando, horas e horas. Havia uma cumplicidade dos artistas com a arte”.

No ano seguinte, o Festival acabou sendo realizado no Centro de Turismo. Em 1980 não houve festival, que voltou a plenos pulmões no ano seguinte, já com versão de três dias e, reunindo novamente todas as artes. As exposições foram ampliadas e levadas agora às salas internas da Fortaleza dos Reis Magos. Daquela ocasião, Eduardo Alexandre conta que “foi um sufoco conseguir colocar os quadros naquelas paredes de pedra”. Em 1982, vendo que o Forte já estava ficando pequeno para o público, Eduardo conta que sugeriu que parte dos espetáculos fossem realizados em um circo a ser montado diante do Forte, mas lembra que a Fundação José Augusto deu parecer contrário, “alegando que o solo arenoso e o vento não deixariam a lona em pé”. Os Festivais continuaram a ser realizados na Fortaleza por mais algum tempo, até ser levado para o Bosque dos Namorados e depois Cidade da Criança, onde foi realizada sua última versão.

Personas
Realizado sempre nos dias de lua cheia, o Festival do Forte, como ficou genericamente conhecido o Festival de Artes de Natal, teve ainda muitos outros personagens. “Lembro de Jota Medeiros entrar trotando num cavalo... teve Edílson Dias, um ator, que apresentou um monólogo completamente nu!”. De Carlos Gurgel, Luiz Lima é quem conta que dois ou três dias antes do Festival começar, Gurgel sumiu do mapa sem mais nem menos. “Quando a tensão estava muito alta pela quantidade de tarefas e problemas relativos à produção ainda por resolver, Gurgel de repente sumiu, escafedeu-se completamente. Só foi aparecer depois do festival terminado, se não me engano. Mas ele se redimiu, totalmente, quando organizou praticamente sozinho a edição seguinte do Festival”.
Dono de uma fita de vídeo que talvez seja o único registro audiovisual do Festival do Forte, o músico Carito, hoje líder dos performáticos Os Poetas Elétricos, lembra com saudade da participação que teve no Festival com a banda de rock Fluidos. “A gente fazia parte de uma cena inaugural do rock potiguar. E esse festival foi importante pra a gente e, acredito que a gente pro Festival, por que naquela época existia uma espécie de divisão entre Mpb e Rock. Havia uma certa resistência ao Rock”. Além de ter a chance de ampliar o público dos Fluidos – uma banda ‘porrada’, nas palavras do músico - , Carito recorda que a performance do grupo agradou o público. “A gente chegou mandando ver, fazendo muita invencionice... e pra a galera que tinha um link maior como a Mpb, a gente causou um choque, foi bem interessante...”.
Na edição de 1984, ano em que o Fluidos se apresentou pelos espaços seculares do Forte, a ditadura militar dava o último suspiro antes do mergulho final. E do tempo da censura e das patrulhas ideológicas, Carito não se esquece de um fato inusitado horas antes da apresentação no Festival. “A gente teve que levar as músicas lá na Censura, e tinha uma delas que se chamava ‘A revolução do Brote Seco’. Era uma espécie de crônica irônica, uma linguagem de humor... guitarra crua... e a palavra “revolução” não era permitida. Tivemos que explicar o porquê do uso da palavra “revolução” e ele deixou passar, mas como o Censor era carioca e não sabia o que era ‘brote seco’, ele disse: Tudo bem. Revolução está explicado, mas o que diabos é brote seco?”. Hoje, Carito se diverte com o chiste do Censor e satiriza: “O brote seco acabou se tornando uma coisa subversiva”.

Para o evento, vinham caravanas de outros estados, como Paraíba, Pernambuco e Bahia. Luiz Lima lembra que a patuléia era “fundamentalmente composta de jovens, estudantes malucos e caretas da classe média de Natal e um percentual de “ripongas”, que eram uma espécie de versão brasileira dos hippies americanos dos anos 60; tipos de estrada, vivendo de artesanato e tal.” Pelos palcos dos Festivais do Forte passaram várias atrações de peso. De Jards Macalé, Raul Seixas, Jorge Pá Pá Pá, Geraldo Califórnia, Gil, Jorge Mautner, ao grupo teatral e performático Gato Lúdico, se estendendo pela poesia alternativa do Aluá, até Chico César e a trupe Jaguaribe Carne deram o ar da graça pelo Festival. Sobre Jards Macalé, o jornalista e agitador cultural Yuno Silva é quem ‘reza’ uma lenda ainda passada de pai pra filho. “De passagem pela cidade, o Macalé chegou para a apresentação e foi ficando, ficando, ficando e, nessa brincadeira, foram uns dois meses. Na casa de um, de outro, noites e dias regados a muito álcool, nicotina e cannabis. Sei que ninguém agüentava mais e tiveram que pedir pra alguém da família vir buscar”.

Um verdadeiro divisor de águas no cenário alternativo da cidade, o Festival do Forte foi a crista movente da onda. Um espaço de criação e novas possibilidades. “Eu acho que é uma época que ta lá – diz Gurgel minimalista - pra mim representa um tesouro... foi um marco... uma referência”. Sobre a possibilidade de se organizar um novo festival, ele diz que “seria legal juntar essa galera, mas reeditar um evento com aquela fisionomia... acho difícil. A gente cumpriu um papel. As pessoas se debruçaram mais sobre o fazer artístico. E eram os anos setenta, né? Essa revolução total. Sexo, drogas e rock and roll. Uma época de vitalidade. Se fosse pra fazer outro festival, tinha que ser como naquela época. Uma coisa meio aquariana”, eis o mote.

Parou por quê?
Cedo ou tarde as mudanças chegariam. E chegaram mesmo. O tempo passou e criou-se um hiato dentro da contracultura potiguar. O músico Luiz Lima, que hoje vive na Europa, analisa com olhos antropológicos todo esse cenário. “De lá pra cá, os tempos definitivamente mudaram, mas acredito que sejam sempre essas iniciativas e expressões espontâneas de liberdade, relativas a cada época, que impulsionam, que dão vitalidade ao processo cultural”. Carlos Gurgel acredita que depois dos Festivais, “houve uma certa dispersão artística na cidade”, só não sabe dizer o ‘por quê’. De todo modo, ele sintetiza os Festival nessas palavras: “Acho que o festival teve uma intenção. Desencadear essa inquietação. Era uma celebração, uma coisa nova, essa coisa híbrida, de convergir para o mesmo lugar várias manifestações... Estabeleceu na cidade essa discussão: o que é arte? O que é poesia, o que a música pode representar?”.
E a Praia dos Artistas? Antes um ancoradouro de poetas, cantores, atores, artistas plásticos e outros gêneros criadores, há muito não merece ser chamada assim. Sem falar que as prioridades também mudaram. Veio a família, as responsabilidades, o capitalismo selvagem, o gel com brilho, a poluição e o peso de ser engolido pelo famigerado sistema. Mas como diz o artista plástico, sempre portando bigode e cabelão liberto, Marcelus Bob, “os tempos de Festival do Forte e da Galeria do Povo na Praia dos Artistas deixaram saudades, mas ainda temos magos circulando por aí”.
MATÉRIA PUBLICADA NA REVISTA BROUHAHA, Nº13

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