terça-feira, 23 de dezembro de 2008

QUANDO O CHORO SAI DO BURACO
















O chorinho dominando as ruas da Ribeira. (Fotos: Elisa Elsie)






“Minha filha, você canta um jazzinho? Ou um fox-trotzinho? Ou um tanguinho? Então por que há de cantar um sambinha? Use o nome correto: samba!”. Esta é uma bronca famosa de Ary Barroso em uma das calouras de seu programa de rádio quando ela disse que iria cantar um "sambinha". O engraçado é que a música apresentada depois foi nada menos do que Aquarela do Brasil, a mais famosa música do próprio Ary. Este pode ser o motivo pelo qual alguns músicos se referem ao estilo pelo nome Choro, e não pelo diminutivo Chorinho...
Nomenclaturas à parte, a verdade é que Choro parece ser mais respeitável, ajudando a dar o merecido reconhecimento a um dos mais criativos e sofisticados estilos musicais brasileiro. Com mais de 130 anos de idade, hoje, o Choro se reinventa na Cidade do Sol. Caracterizado pelo improviso e pela verve de quem toca, o ritmo executado pelas ruas da Ribeira não faria vergonha de jeito maneira à Joaquim Calado – considerado o pai do gênero - ou à Pixinguinha, um dos mais conhecidos chorões de que se tem notícia, porque benza Deus! O que os caras do Catita Choro & Gafieira tocam, não é brincadeira.

Com o solista, que pode ser uma flauta ou algum outro instrumento de sopro, o bandolim, o cavaquinho, que faz uma espécie de elo entre a percussão e a harmonia, o pandeiro mantendo a marcação e o violão de sete cordas delineando a melodia, o grupo do Catita tem arrastado pequenas multidões até a Rua Câmara Cascudo, berço do grande mestre, da terça-feira em diante, desde o dia 23 de abril, que foi quando o espaço foi oficialmente inaugurado. Mas antes de fazer parte do cenário boêmio do velho bairro, a roda de Choro se fazia presente em outras cercanias.

A origem do Buraco

A gênese do Buraco da Catita, espaço cultural organizado pelo grupo musical Catita Choro & Gafieira, remonta aos ‘Becos da Lama’ da vida, quando o pessoal ainda não tinha nome e se reunia informalmente em benefício da melodia. “A gente ia lá pro Beco do Lama no Bar de Nazaré, toda tarde, na sexta-feira, pra ouvir música. Cada um levava um CD e ficava por ali ouvindo”, relembra Ronaldo Freire, flautista do grupo. Além de ouvir, o grupo se juntava para aprender, já que Camilo Lemos tinha acabado de adquirir um violão e precisava conhecer o novo instrumento. “A gente foi à Dácio Galvão propor um projeto. Era o Chorando na Feira. A idéia era tocar Choro nas feiras livres: Alecrim, Carrasco, Rocas e tal... tudo isso pra comprar o violão”, revela o próprio Camilo.

Com o instrumento em mãos, as esquinas do Beco da Lama não foram mais as mesmas por algum tempo. A reunião sonora que, começou com o único intuito de estudar música, cresceu em progressão geométrica. O grupo começou tímido, sem uma formação fixa. Depois foi tomando corpo e reunindo adeptos. “Nós começamos a nos reunir eu, o Camilo, o Marcelo Tinoco, que é um cara que participa desde o começo, o Carlança, que é um músico daqui de Natal que freqüentava o Beco da Lama. E aí, pra tocar pandeiro, aparecia um, aparecia outro. Era desse jeito”, recorda Ronaldo Freire. No final do mês – Camilo conta risonho – “o pessoal já tava dizendo: e aí, vocês não vão tocar não?”.

Camilo relata que o espaço passou a abrigar uma verdadeira miscelânea de tipos. “Era guardador de carro, médico... uma mistura da porra. Talvez fosse ali, o local mais democrático. A gente percebeu que Natal tava carente de alguma coisa desse tipo”. Inicialmente acontecendo no Bar de Nazaré, a roda de Choro, mesmo aumentando de tamanho e movimentado o pequeno logradouro, acabou sendo despatriada. Dona Nazaré, proprietária do Bar, reclamou e eles tiveram que meter a viola e demais instrumentos na sacola. O flautista do grupo, Ronaldo Freire, analisa: “Nós tivemos esse problema logístico lá e o jeito foi se transferir pra outro lugar, e depois pra outro. Aí foi quando o Camilo descobriu um espaço e teve a idéia de fazer um centro de cultura e é claro, trazer o Chorinho”.

Cortando as fitas do Buraco

Rua Câmara Cascudo, Ribeira. Mudança feita, o grupo começaria tudo de novo. Se reunir e tocar Choro sem grandes pretensões. Com metralha espalhada pelo pequeno ambiente recém alugado, sem energia elétrica no local e crentes que tocariam apenas para eles, o vizinho da frente – Seu Raimundo - foi quem fez a contagem: “130 pessoas” - que apareceram numa ocasião anterior à abertura. Inaugurado no aniversário do mestre Pixinguinha, no Dia do Chorinho e aos cuidados do grupo de músicos, a cidade ganhou mais um reduto de boemia e, sobretudo, de boa música – O Buraco da Catita.
Mesmo com um nome que soa estranho aos ouvidos incautos, o harmonioso recinto foi criado com um objetivo muito nobre: celebrar o Choro e aglutinar músicos de todas as vertentes. “Eu pensei primeiro em Primas e Bordões, que é um disco de Choro de Jacó do Bandolim. Além disso, primas e bordões são cordas, não caracteriza nenhum estilo, mas disseram que era muito refinado”, explica Camilo. “O Buraco da Catita é o seguinte: Tem um compositor de Choro aqui no Rio Grande do Norte chamado K-ximbinho, que teve grande projeção nacional. Catita é uma composição dele. Nossa tendência como um grupo de Choro do Estado era homenagear alguém daqui. Á princípio, o nome ia ser Toca da Catita. Mas como quem vive em toca é raposa e, catita vive em buraco, aí ficou o nome Buraco da Catita, que é impactante na primeira vez que escuta, mas depois o sujeito se acostuma”, complementa o flautista Ronaldo.

Uma boemia bem musicada

Rua fechada. Os carros não passam. Vendedores ambulantes tiram o seu trocado vendendo cerveja. Mesas lotadas, burburinho, salvas de palmas constantes e centenas de ouvidos sintonizados na melodia contagiante do Choro. Esse cenário criado pelo grupo do Buraco da Catita mais uma vez e em muito pouco tempo, tem atraído de boêmios à professores universitários, além de um público jovem que não marcava presença no Beco da Lama. “Você não vem só pela boemia em si, mas sim pela música. Essa é uma das características da roda de choro. Uma música instrumental que é extremamente popular, diferente de outros gêneros instrumentais que, em geral, ficam restritos a certa intelectualidade musical”.

Sobre o fato de estarem atualmente situados na Ribeira, um antigo bairro da cidade, Camilo é saudosista: “Olha esses casarios aqui... ainda existe uma aura. É um lugar belíssimo, que ainda respira poesia”. O músico explica ainda, a razão de ser do Buraco da Catita. “Isso não é bar, e nunca vai ser bar. É um espaço pra gente tocar e agregar arte, um espaço realizador... E que se toque música com esse espírito... Sem mecenato”. Sinestésico, Camilo sentencia: “Ainda existem sonhadores”.


Olhares sobre o Buraco

Hoje com endereço fixo e com um público que já pode ser considerado fiel, o grupo, que se reunia despretensiosamente, tem o costume de receber amigos para aumentarem a roda do Choro. Um que sempre passeia com sua flauta em mãos pelo Buraco da Catita é o músico Carlos Zens. “Eu acho maravilhoso. Estão tornando o Choro mais público, mais próximo do povo. Ao mesmo tempo, o Choro exige muito do músico, que tem que pesquisar intérpretes e novos compositores. É uma música fundamental”.
Outro que tem entrado constantemente no compasso do Choro é o infant terrible Diogo Guanabara. O jovem músico tem sido figurinha fácil no festivo e sonoro ambiente da Rua Câmara Cascudo. “Antigamente tocavam chorinho lá em Rochinha dos Pneus, no Café Nice no centro, mas era freqüentado por um pessoal mais antigo. Aqui em Natal, as pessoas despertaram e decidiram olhar para o que a gente tem de bom. O pessoal está produzindo um movimento original, tem sido o programa de sexta-feira à noite... é uma forma das pessoas se aproximarem da nossa cultura brasileira”.

Estilo e pessoas

O chamado "regional", composto por dois ou três violões, cavaquinho, pandeiro e um solista, sendo pau pra toda obra, é a maneira como o pessoal do Catita se organiza. O grupo, vez por outra, nem precisa de arranjo escrito e acompanha até o que não conhece. “O interessante é que, tecnicamente, o Choro é uma música bem avançada, no sentido harmônico e no sentido melódico dela. E tem uma coisa que é a improvisação... Tem uns chorões que gostam de fazer pequenas variações em cima de determinado tema... é uma música muito flexível”, analisa Ronaldo. Para Camilo, o Choro “é uma música aparentemente ingênua, mas é altamente complexa, poli-ritmica, contra-pontista, deixa a alma alegre”.

Formado por Camilo Lemos fazendo a permuta entre e o violão e a guitarra, Zé Fontes dedilhando o contrabaixo, Marcelo Tinoco incendiando o Bandolim, John Fidja sentando o pau na bateria, Gilberto Cabral na cadência do trombone, Enéas Albuquerque distribuindo simpatia com o Clarinete, Neemias Lopes na introspecção do saxofone, Antônio Carlos no trompete e Ronaldo Freire fazendo solos desconcertantes com sua flauta, o Catita Choro & Gafieira acaba sendo um verdadeiro hino à diversidade. O grupo é composto de músicos de formação clássica e outros com raízes populares. “Tem o Enéas, que a gente chama de “lorde”, que toca em orquestra sinfônica... tem o Antonio Carlos que já tocou nas melhores orquestras da Europa. Gilbertão – maestro de Choro e Frevo... de formação erudita, tem Neemias, é uma mistura... Alguns são músicos de orquestra e alguns são da noite”, finaliza Camilo Lemos.
Quando pergunto sobre a expectativa de Camilo sobre o Buraco da Catita, ele demora um pouco a responder. Com um hiato de uns 30 segundos ou mais depois da indagação feita, o músico escolheu da melhor maneira as palavras que queria dizer e disse: “Espero que esse centro cultural seja um grande catalisador... que entre para o coração da cidade... que seja uma flor na lapela, que seja uma pérola... que se mantenha puro”.

O Choro
O choro pode ser considerado como a primeira música urbana tipicamente brasileira. Os primeiros conjuntos do gênero surgiram por volta de 1880, no Rio de Janeiro - antiga capital do Brasil. Nascidos nas biroscas do bairro Cidade Nova e nos quintais dos subúrbios cariocas, esses grupos eram formados por músicos, muitos deles funcionários da Alfândega, dos Correios e Telégrafos, da Estrada de Ferro Central do Brasil, que se reuniam nos subúrbios cariocas ou nas residências do bairro da Cidade Nova, onde muitos moravam.

O nome Choro veio do caráter sentimental e literalmente choroso da música que esses pequenos conjuntos faziam. A composição instrumental desses primeiros grupos de chorões girava em torno de um trio formado por flauta, instrumento que fazia os solos, violão, acompanhando como se fosse um contrabaixo - os músicos da época chamavam esse acompanhamento grave de “baixaria”, e cavaquinho, que fazia o cortejo mais harmônico, com acordes e variações.

K-ximbinho

K-ximbinho, nas horas vagas, atendia pelo nome de Sebastião Barros. Nascido em Taipu, interior do Rio Grande do Norte, no ano de 1917, mudou-se para capital, onde entrou em um conjunto de jazz. Em 1938 passou a integrar a Orquestra Tabajara de Severino Araújo, e quatro anos mais tarde foi em busca do Rio de Janeiro, se desligando da orquestra. Tocou em outros conjuntos na década de 40, e foi também músico de estúdio, acompanhando cantores. Por volta de 1946 voltou a ingressar na Tabajara, que foi a primeira a gravar uma composição de sua autoria, o clássico choro "Sonoroso".
Depois de estudar teoria musical com o maestro Koellreuter e tocar em boates, fez uma turnê pela Europa, na década de 50. De volta ao Brasil, trabalhou como arranjador na Odeon e na TV Globo. Outras de suas composições também se tornaram clássicos do Choro, como “Eu Quero É Sossego”, “Saudades de um Clarinete”, “Gilka’, sem esquecer de “Catita”, música muito importante para o pessoal do Buraco. “Ele revolucionou, modificou a fórmula do Choro, uma pessoa de altíssima importância. K-ximbinho “jazzisticou” o Choro, era um cara à frente do seu tempo, K-ximbinho nosso... Se ele fosse carioca teria uma estátua, um “Instituto K-ximbinho”, esbraveja Camilo Lemos.
MATÉRIA PUBLICA NA REVISTA BROUHAHA, EDIÇÃO Nº 12

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